Gênese de Garcin

(Joseph Garcin, personagem central da peça “Entre Quatro Paredes”, de Jean-Paul Sartre, publicada em 1945. O enredo é transcorrido, todo ele, no inferno. O texto a seguir é construído a partir de pistas dadas pelo autor em "flashes" de memória desencadeados em determinados trechos da obra. O estabelecimento de ensino, a localidade e o jornal citados são fictícios.)

Chamo-me Joseph Garcin. Nasci em 14 de maio de 1910, aqui mesmo, no Rio – bairro das Laranjeiras. Ainda pequenino, costumava observar o modo elegante como meu pai se trajava e se comportava. Parecia-me que a mamãe tinha bastante ciúme dele. Havia sempre muitas mulheres à sua volta. O fino trato que dava às palavras, a maneira como articulava as idéias, isso me foi uma referência que trouxe comigo pelos anos afora.

Aos meus sete anos, iniciei as primeiras letras no Colégio Santa Tereza e, a partir de então, comecei a tornar-me um figurinha e tanto – feito o pai. Tinham-me um certo magnetismo os fatos históricos e, lá pelos 15 anos, comecei a analisar politicamente os acontecimentos de minha época. Era uma fase borbulhante dos movimentos sociais. O Movimento dos Tenentes Rebeldes – Os Dezoito do Forte de Copacabana – ainda estava fresco em nossas mentes. Pela Tribuna do Povo, éramos informados de que o mundo se tornava uma verdadeira “panela de pressão”, pronta para explodir. O socialismo soviético, o crescimento dos regimes de extrema direita na Europa Ocidental, a instabilidade política na América Latina, o “boom” do capitalismo americano, com seu ultraconsumismo, eletrodomésticos, o cinema, a música – anos barulhentos.

Aos dezoito anos, fui obrigado a me ver engraxando coturnos, passando farda, limpando fuzil e latrinas e entoando canções militares – hora de, conscrito, “servir à Pátria”. Longo período em meu viver!

Após aquele extenso ano, decidi-me dedicar ao jornalismo, participar efetivamente dessa efervescência, estar próximo de tudo, no meio das questões, interagindo, opinando, formando opinião.

O “crack” da Bolsa de Nova Iorque foi um golpe duro que nos atingiu também aqui, abaixo do Equador; nossas reservas de café – legítimo produto tipo exportação – eram queimadas a céu aberto. Não demoraria muito para enfrentarmos a primeira revolução dos anos 30, logo na entrada da década. Inicia-se a Era Vargas, com apoio dos ministros militares. Depois foi o “Movimento de 32”, em nome de uma nova constituição. Em 1935, Luís Carlos Prestes, que arrastara milhares por onde passou – alguns pelo caminho ficaram – deflagra a Intentona Comunista.

Posso dizer que tinha uma certa propensão a alinhar-me com a oposição; não que fosse uma ideologia, isso não, mas não havia como estar tão perto e não ter nenhuma bandeira, mas daí a aderir... É bem distante uma coisa da outra. A verdade é que eu não tinha muita têmpera para posicionar-me efetivamente, engajar-me. Imagine só se tivesse de pegar em armas, radicalizar?... Isso não; minhas armas eram outras: a caneta, a máquina de escrever, a palavra – palavra polida -, a crítica velada, mordaz e sutil. Não se ia muito longe atacando abertamente as instituições governamentais; não era muito prudente. E assim eu seguia, satisfazendo minha vontade, mas, acima de tudo, preservando-me. Eu cria que as autoridades nem sequer percebiam a profundidade de meus textos; eles eram abstratos demais para aqueles boçais que enxergavam pouco mais de dois palmos além do nariz.

No dia 27 de maio de 1937, casei-me. Foi aquela festa! A família toda, os parentes de Campos, Petrópolis, São Paulo, enfim, todos vieram. Muita pompa, comida para um batalhão, bebidas nobres, "finesse", "glamour" e muitos, muitos amigos. Havia gente da redação, da faculdade, até do colégio; famílias importantes, algumas autoridades, os convivas de papai...

Minha esposa chamava-se Pillar Gómez Vidal, filha de espanhóis. Apenas Gómez, como ela preferia. Era uma criatura irrepreensível, traços finos, sensivelmente tocada pelas falanges distais dos dedos do sol, boca miúda e grandes olhos – como se esperaria, metaforicamente falando, de uma moça dita discreta e coerente. Todos me diziam: “Garcin, agora te emendas!”. Eu ria e fazia que sim.

Assim foi por alguns meses - uma vida conjugal morna e doce. Gómez era um anjo e eu não a merecia, é a impressão que me resta. O diabo é que eu levara da vida de solteiro os genes herdados de meu pai. Sentia falta dos ares da noite, da boêmia, das ruas estreitas que conduziam ao baixo meretrício. Sentia falta das madrugadas, da pujança da sedução. Não demorou muito e comecei a esticar os dias de trabalho. As noites nas salas de redação começaram a tornar-se rotina – as discussões, charutos, paletós nos encostos das cadeiras, homens em mangas de camisa... Daí aos bordéis foi questão de tempo.

A vida foi correndo e já estamos em 1939. Invasão nazista na Polônia, formação do Eixo, do Bloco dos Aliados, Pearl Harbor, o anti-semitismo de Hitler, o Holocausto... Atônito, o mundo acompanhava os noticiários que contabilizavam milhões de mortos em função de interesses imperialistas e egoístas.

Por aqui, permanecíamos em nossa postura certamente que contrária ao conflito. Eu, no editorial, por minha vez, seguia firme com minhas colunas, minhas crônicas... Nesse período, dividia-me entre a redação, os bordéis e algumas horas de sono letárgico ao lado de Gómez, quando eu trazia no corpo o cheiro de álcool e de colônia das raparigas em que me esfregara a noite toda. Ela, na maior parte das vezes, trocava-me as vestes sem que, sequer, eu me desse conta. A coitada sabia que o casamento já era um zumbi, mas o desdouro atribuído a uma mulher descasada era estigma terrível.

Creio que o ápice de minha inconseqüência foi instalar Tereza em nossa própria casa. Quando Gómez acordou e encontrou sapatos finos, xale e meias de liga, tudo espalhado pela sala de estar, bem como a porta do quarto de visitas trancada a chave, foi o vaticínio de um inferno que se lhe arrastaria até o fim de meus dias.

Em 1944, fui convocado para apresentar-me às armas, pois era reservista e os soldados do exército regular já não mais chegavam para enviar à Europa. Mas as armas não me eram do agrado, eu apenas lutava com meus textos, minhas idéias; nunca corpo a corpo, nunca a baioneta. Fui ter com o comandante e informei-lhe que não nascera para o embate físico. O resultado? Recolhido ao xadrez e minha conduta enquadrada como insubordinação. Teria de aguardar, encarcerado, cabo do processo.

Nos meses que se seguiram, os dias foram longos, as noites intermináveis. Em toda essa passagem, Gómez compareceu religiosamente ao quartel, dia após dia, para ver-me, trazer-me acalento. Mas, a cada aparição sua, era como se me fincassem um punhal acutíssimo no peito. Parecia-me ela fazer questão de ir para lembrar-me de minha vida pregressa, minhas máculas, as faltas ao dever conjugal...

Findado o processo, a Corte Militar deliberou a sentença condigna. Estávamos em tempo de guerra, a punição não seria outra. A Justiça Militar, nesses casos, era implacável – pena capital. Enfim o dia: olhos vendados, mãos atadas às costas, cingindo o mastro fincado, o soluço intermitente, o pranto incontido, os estampidos, a escuridão... o criado... o Inferno!

Éder de Araújo
Enviado por Éder de Araújo em 15/11/2006
Reeditado em 20/12/2013
Código do texto: T292389
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