O HOMEM DO CORAÇÃO GRANDE

Em Caxias do Sul, após ter fugido de casa do meu pai em São Leopoldo três dias antes, num bar, onde deixou-me o motorista que tinha me dado carona na BR 116 desde antes de Galópolis, conheci um jovem senhor que me deu dinheiro para fazer fotos a fim de fazer uma nova carteira profissional, pois a que eu possuia não fora dado baixa da empresa em São Leopoldo que eu era cotista. Quase madrugada, quando pensava que passaria a noite em pé junto a um edifício na avenida Rio Branco tentando me abrigar da chuva, apareceu um homem com fala meio afeminada, o qual me convidou para ir à sua casa, onde dormi após repelir sua tentativa de fazer-se de minha mulher. Na noite do dia seguinte, quando eu já tinha a nova carteira profissional, Gentil, o homem afeminado, apresentou-me seu primo Adilson, com dois anos mais que eu, um pouco mais alto, porém, e ficamos muito amigos. Corpo sarado, cheio de fazer academia, Adilson logo me apresentou sua namorada, Glaci, ou Gladis, uma ruiva linda de cabelos compridos, sardenta, com dezesseis anos apenas.

Algumas vezes andei com o Adilson por Caxias, sendo que ele gostava de freqüentar o parque Cinqüentenário, onde se encontrava com uma turma para fumar maconha. A casa do Gentil, onde estávamos, ficava há umas duas casas do portão do parque, na avenida Itália. Uma vez encontrei o Adilson muito tonto, parecendo bêbado, e pensei que estivesse, mas ele não falou enrolado quando me disse que tinha tomado umas “pancas”. Apesar de meio louco, ele era um bom amigo, que suportava minhas críticas a maconha e drogas, mesmo quando ele estava fumando ou cheio de “panca”. Certa vez andava-mos por uma rua de chão, numa vila que me parecia muito assustadora, entre a avenida Júlio de Castilhos e a Bento Gonçalves, próximo ao campo do Caxias, e vimos um Chevette novinho aberto, ligado e com a chave na ignição. O Adilson falou que era carro roubado que os ladrões tinham abandonado. Ficou afoito para sair dirigindo, mas ouviu meu discurso sobre como seria cruel a vida de criminoso, sendo que não poderia desfrutar da felicidade com a ruivinha. Não insistiu, também jamais me foi ríspido ou violento, mesmo quando chapado. Fomos embora e não falamos mais no assunto.

Por fim, eu era amigo de todos os amigos do Adilson, que fumavam maconha e se chapavam com ele. Acho que o único amigo que ele teve que não fazia isto era eu. Andava com a turma para cima e para baixo e muitas vezes corri sem saber do que. As vezes eles farejavam o cheiro de maconha não sei de onde e saiam como cachorros atrás do rastro, sendo que eu os seguia sem saber do que se tratava. Quando via que tinham feito tudo aquilo por causa de um cigarro de maconha, eu baixava o sermão. Eles não se incomodavam com os meus sermões e quando me viam já sabiam que ia dizer-lhes que não entendia o que viam em usar drogas.

Certa vez eu passava pela praça Dante Aligueri, no centro, e vi a ruivinha do Adilson conversando descontraída com um dos amigos dele, um grandão, mais velho e um pouco gordo. Achei meio estranho aquilo, ela ali, sem ele, mas cheguei para perto, sendo que o cara já me tinha chamado e apresentou a ela, que logo começou a falar sem parar. Quando tive chance de falar, perguntei-lhe porque estava ali sem o Adilson. Seria que tinham terminado o namoro e eu não sabia? Os dois caíram na gargalhada, rindo um bom tempo sem que eu pudesse entender o porque. Depois ele me disse sorrindo que ela mão era a namorada do Adilson, mas a irmã gêmea dela. Era incrível a semelhança e como era linda. Meu coração ficou cheio de palpitações, mas reteve-se por conta de meu recalque crônico.

Nos próximos dias, após a chegada em Caxias e o dia seguinte, comecei a ir no bar da esquina em horários que não coincidissem com as refeições, pois me sentia constrangido com a idéia de estar explorando o grande amigo atendente. Nos primeiros dias não tive dinheiro e nem o que comer, sendo que na casa do Gentil não havia comida mesmo. A sorte é que havia um coqueiro na avenida Italia, por onde ia e vinha de quase todos os pontos onde andava. E o coqueiro estava carregado, sendo que cada vez que eu passava enchia um saquinho que já carregava para isto. Depois comia-os no parque Cinqüentenário. Por uma semana comi somente coquinho e não tenho lembrança de ter comido outra coisa.

Havia ainda a preocupação com a aparência, visto que poderia ter minha foto estampada no jornal Zero Hora, de abrangências estadual. Um dos amigos do Adilson me disse um dia que me viu no jornal, mas não me mostrou o exemplar. Então consegui um dinheiro com o Gentil e fiz um corte tipo Roberto Leal, que usava chanel. Tive o cuidado de conseguir também esparadrapo para cobrir um sinal no queixo que tenho desde que nasci.

Os guris andaram falando de um emprego para vendedor de cachorro quente, cujo patrão hospedava, com direito a comida e tudo, além que pagava sete mil por mês, o que correspondia a uns dois salários. Era ideal para mim, embora jamais tivesse pensado em ser vendedor de cachorro quente, mas não se tratava de uma alternativa, sim uma oportunidade de fugir da fome e do constrangimento na casa do Gentil. Havia um problema, porém: Quem seria o responsável para assinar por mim que era menor de idade?

O amigo do bar da esquina não, pois seu nome nem sombra do meu tinha. Cheguei a falar com ele, que me incentivou a pegar o trabalho, mas lamentou não poder ficar como responsável. Mas o Gentil tinha um dos meus sobrenomes na carteira de identidade e logo eu o apresentei como meu primo grande.

O pobre homem nem questionou. Apenas foi e assinou. Decerto já estava louco para se ver livre de mim, ou era de um grande coração mesmo.

Wilson Amaral

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 15/02/2007
Reeditado em 22/02/2007
Código do texto: T382726