ANJOS EM PELE DE GENTE

Este texto seqüência é do texto A CARONA DA SANTINHA.

Fui acordado por um impacto no meu lado, o qual senti na região entre a bacia e as costelas. Ao abrir os olhos, vi um vulto que caia sobre mim em sentido transversal, passando para o outro lado. Ao levantar-se rapidamente, o sujeito disse: “Quase urinei encima do homem!”. Ele tinha entrado no arbusto para urinar, tropeçando em mim, que dormia sob a copa das hortênsias que circundavam a praça do centro de Lages.

Ia alta a noite. O rapaz estivera bebendo numa lancheiria, ou treiler junto à praça, bem próximo de onde eu dormia, pois de lá eu ouvia conversas e risos. Mesmo assim, dormi rápido, tal era o cansaço produzido pela caminhada do dia anterior. Chegara de Caxias do Sul às duas horas da madrugada, após ter caminhado desde as quinze e trinta, percorrendo uns cinqüenta, ou mais quilômetros, desde o pondo onde terminara uma carona que eu ganhara ainda antes de São Marcos, até ir dormi num banco da estação rodoviária em Lages.

Desculpando-se e limpando a roupa, o rapaz foi-se embora e eu segui meu sono.

Tinha sido o segundo dia desde que eu me livrara de um patrão violento e explorador, para quem eu e outro garoto como eu trabalhava-mos de vendedores de cachorro quente em Caxias do Sul, para onde eu tinha ido após sair da casa de meu pai em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Agora eu estava há quase trezentos e cinqüenta quilômetros de casa.

Após fazer um lanche no início da manhã, percebi que o dinheiro da falta de féria que eu tinha feito no caixa do carrinho de cachorro quente em Caxias não seria suficiente para um lanche ao meio-dia. Preocupado com o que comer, pensando também na possibilidade de ficar na cidade, tomei informação do vendedor de pipocas, um garoto, como eu, que encontrei trabalhando com um carrinho em frente a estação rodoviária. Ele me explicou onde eu poderia pegar picolé para vender. Depois saí a procura da empresa de picolés, querendo também conhecer a cidade, indo até o centro pelo caminho que ele me tinha indicado, uma avenida de pista dupla, que ia desde a avenida próxima a rodoviária, por onde eu tinha vindo desde a BR 116 no primeiro acesso que encontrei na noite anterior, até a praça do centro, na frente da catedral, que fica ao lado da prefeitura.

Não encontrei a empresa de picolé, mas numa praça no centro identifiquei um bom lugar para dormir sob as hortênsias, sem tomar no corpo o sereno da noite de verão.

Por causa da falta de dinheiro protelei o almoço, indo comer somente no meio da tarde, quando, com as poucas moedas que sobraram, comprei um pacote de pipocas do garoto da estação rodoviária, com quem conversei longamente, respondendo uma seqüência interminável de perguntas que me fez, como ficou sabendo tudo a meu respeito. O pacote de pipocas reforçado com água do banheiro da rodoviária apenas amenizou a fome, que eu suportei em silêncio até que o garoto me deu um monte de pipocas que sobraram, quando, no final de seu expediente, fechou o carrinho e se foi.

Com as pipocas em lugar de janta e sem o amigo para conversar, percorri a distância sem fim da íngreme avenida de pista dupla, indo deitar sob a copa de um muro de hortênsias após perambular pelo centro da cidade conhecendo seu movimento noturno.

O resto da noite passou num único sono, depois que fui atropelado pelo rapaz que pretendia urinar nas hortênsias. Pela manhã, após caminhar um pouco pelo centro, fazendo tempo vendo o leiteiro deixando as caixas de leite nas mercearias e armazéns, desci para rodoviária, indo falar com meu amigo vendedor de pipocas. Pensava eu no que comer durante todo o dia, sem ver solução. Sabendo de minha situação, o amigo logo me serviu um pacote grande de pipocas e notificou que naquele dia eu ia almoçar em sua casa, pois era convidado especial de seus pais, que tinham ficado muito interessados em me conhecer depois do que ele falou de mim para eles. Embora que estivesse muito envergonhado, não só por ser servido por pessoas tão amáveis sem nenhum merecimento, mas também por minha condição de andarilho, fui recebido na casa do amigo como se fosse um príncipe chegado de outro planeta. Não conhecia a importância de ser gaúcho, mas eles me disseram que sempre tiveram vontade de conhecer um gaúcho pessoalmente, de tanto que admiravam, mas ficaram mais encantados quando disse que era gremista e que a cidade onde eu vinha ficava próxima a cidade da sede do Grêmio Futebol Porto-Alegrense. Estupefato, vi feliz seus sorrisos verdadeiros por me terem recebido em sua casa. Jamais em minha vida vira tal demonstração de afeto e tanto valor demonstrado a uma pessoa comum e a coisas tão simples, como ser gaúcho e gremista.

Quando despedimo-nos para retornar a rodoviária, indagaram se eu iria permanecer na cidade, fazendo já o convite para voltar outras vezes caso ficasse. Respondi que não sabia, pois dependia de conseguir trabalho, mas não poderia esperar muito, porque não tinha o que comer e nem onde ficar, muito menos roupa para trocar. Todavia, se seguisse viagem, iria para São Paulo. O pai do meu amigo disse que um trem saia de Lages no sábado, às dezoito horas, indo até Mafra, da divisa com o Estado do Paraná, onde chegava após doze horas e vinte minutos de viagem. Era sexta-feira. Falei que ia procurar a distribuidora de picolés e se não conseguisse produto para vender tomaria aquele trem no dia seguinte. Pediram-me então que se fosse embora voltasse para outra refeição e para as despedidas.

No retorno para a rodoviária já comecei a sentir cansaço, dores na caixa torácica, na cabeça e nuca, respiração quente e pouca disposição, sintomas que, comumente, se antecipavam as crises de bronquite mais assoladoras que desde sempre me acometiam algumas vezes no ano. Com muito pouca força para caminhar, despedi-me do amigo bem antes de findar seu expediente e encarei a subida da longa avenida até a praça, onde pretendia deitar em um dos bancos e adormecer simplesmente, sem saber como suportaria a noite sob as hortênsias com o início de uma grave inflamação respiratória, queimando de febre.

Wilson Amaral