ESTUDO CRÍTICO

Preceder de uma notícia as obras que se acham reunidas nesta edição é um dever que se impõe naturalmente ao editor.

A notícia, porém, que tentássemos fazer não poderia ser mais minuciosa, imparcial e competente do que o estudo crítico que, por ocasião do aparecimento do poemeto Diário de Lázaro, escreveu o Sr. Dr. Franklin Távora é, pois, pedindo vênia ao ilustre autor desse estudo que para aqui o trasladamos.

***

Há perto de oito anos, tratando de Gonçalves Dias em um livro de crítica (1), escrevi algumas palavras onde se patenteara, posto que rapidamente, não só um juízo, mas também uma previsão e um receio sobre o autor deste poemeto:

«É ele (G. Dias) – indisputavelmente o nosso primeiro poeta, e dificilmente terá um sucessor que se lhe aproxime, si a ingrata sorte arrebatar cedo á pátria o estro mágico de Fagundes Varela, que, no meu fraco entender, é o vate mais genuíno, opulento e mavioso da moderna pleiade nacional”.

(1) CARTAS A CINCINNATO, Estudo crítico sobre o Gaúcho e Iracema de José de Alencar, pag. 166.

Muitas e galantes musas enchiam de gratas harmonias por esse tempo, ao norte e ao sul, o céu da pátria. Algumas tiveram posteriormente os lábios selados pela mão da morte: o país ainda pranteia Castro Alves, Almeida Braga, Torres Bandeira, Mendonça, e ultimamente Carvalhal, quase desconhecido desta Corte. A outras impôs silêncio a política, a descrença ou o fastio

a vida literária, tão pobre de atrativos entre nós: há quanto tempo não se escutam as suavíssimas vozes poéticas de F. Otaviano, Teixeira de Mello, Amaral, Bittencourt Sampaio, Dias Carneiro, Cesário de Azevedo e alguns outros?

Não ficaram aí os dias nefastos para as letras brasileiras. Desiludidos de todo, ou remontando a novos ideais, vão emudecendo Tobias de Menezes, Bernardo Guimarães, Victoriano Palhares, Gomes de Souza. Se alguns: Machado de Assis, Guimarães Júnior, Cardoso de Menezes, Franklin Doria, Mello Moraes Filho, Santa Helena Magno, Juvenal Galeno, Júlio César — ainda trovam, as suas troyas são mais a expressão das melancolias da tarde que a alegre e fresca toada das aves do bosque ao despontar do dia.

Vários poetas, formando uma constelação, porque, além das melodias nos lábios, trazem nas faces as cores brilhantes da mocidade, vão surgindo, mensageiros de aurora nova que promete claridades de dia oriental.

Destacam-se, entre outros: Theófilo Dias, Valentim Magalhães, Assis Brazil, Raymundo Corrêa, Damasceno Vieira, Eduardo de Carvalho.

Ora, cada um deles, ou pertença á geração que já vai descendo a montanha da vida, depois de haver encarado o sol em todo o esplendor; ou pertença á que se aproxima do viso, e ainda tem algumas ilusões com muitos clarões róseos; ou pertença á que da raiz da montanha ou do ameno vale alcança com as vistas alevantadas as luzes aéreas através de um véu de brancura láctea, urdido pela mão mágica da esperança, entretecido de flores, matizado de paisagens feiticeiras — arroubo das suas paixões generosas — cada um tem a sua feição particular, a sua tristeza ou a sua alegria, a sua veja anacreontica, elegíaca ou epigramática, o seu fervor, o seu brando sentir, ou o seu entusiasmo; cada um, como o Anteu recebia forças da mãe-terra, recebe da pátria, da mulher, do povo, ou da natureza o oxigênio que lhe avigora as inspirações. Mas nenhum destes estimados cultores das musas — seja-me permitido dizê-lo sem a menor sombra de ofensa ou menosprezo a tão respeitável congresso de talentos, en- tre os quais conto muitos de quem sou sincero amigo e admirador — nenhum destes possui a veia lírica tão potente e móbil como a possuía Varella, exceto Teixeira de Mello (2) e Tobias de Menezes que, quando quer ser lírico e idealista, disputa as primazias ao que for mais rico destes divinos favores.

Três anos depois de virem á luz aquelas palavras, as letras brasileiras trajavam luto. Varella terminara os dias antes de ter legado á pátria todos os frutos da idade viril, que haviam de valer mais, a julgar pelo Evangelho nas selvas, que as flores da mocidade, não obstante serem muito odoríferas e louças.

O mais avultado dos seus frutos, talvez o único que o verme do esquecimento não há de corroer de todo, o Evangelho nas selvas, confirma-me no conceito a que aludi.

No ultimo triênio o poeta de Mimosa aproximara-se muito mais do que d'antes do poeta doe Timbiras. Olhando para trás, não vira, entre tantas jóias esparzidas imprevidentemente pelo seu desgovernado engenho, nenhuma que lhe afiançasse sobreviver-lhe por muito tempo.

Foi quando a ideia de deixar o nome em algum monumento perdurável ocorreu a Varella, que até então se deliciara em fantasias e sonhos fugazes, como os sorrisos ou as lágrimas infantis.

(2) No seu livro Sombra e sonhos.

Concentrou-se, e produziu em poema de gênero lírico e narrativo, único que se harmonizava com o assunto que escolhera, a vida de Jesus ensinada no deserto por um missionário, que passa por ter sido um poço de piedade e virtudes, José de Anchieta.

Que nume deverá presidir ao nascimento do filho da sua imaginação? Basílio da Gama, Durão, Gonzaga ou Magalhães? Nenhum destes. Nenhum destes é seu irmão no lirismo panteísta, primeiro meio de manifestar a admiração pela alma da natureza americana, essa alma que se revela misteriosamente nas florestas verdes e nas montanhas azuis.

Magalhães inclina-se ao gênero épico; a narração de Santa Rita Durão tem muito da rijeza que lhe deixaram os moldes clássicos; Basílio da Gama propende para a poesia patriótica e guerreira; Gonzaga, cantor namorado, trovador da idade media, traz postos os olhos em um polo invariável e fixo, o amor da mulher. O horizonte da inspiração de Varella, mais vasto e mais flexível, tem de adaptar-se ao amor da humanidade. Os seus heróis estariam deslocado em uma epopeia, posto não haja

drama tão solene como aquele que do saacrifício de Jesus tomou os traços e as cores que o imortalizaram.

Este drama, para ser fielmente interpretado, há de ser cantado em verso dolente, mavioso, singelo, porque na vida do protagonista, cuja alma era lírica (3) e na dos personagens que à roda dele se moviam como as mariposas revoam em torno de uma luz branda, e não das chamas das fogueiras, o primeiro lugar pertence às paixões resignadas ou inocentes, àquelas que, segundo V. Hugo, existem em Atala “ cobertas por longos véus cândidos” . A epopeia do Evangelho — e não direi a do cristianismo, porque o cristianismo não está isento de sangue — a epopeia do Evangelho só um poeta lírico-sentimental a poderia realizar. Firme nesta convicção, Varella volta-se para aquele dos nossos poetas que, ainda quando descreve combates e canta feitos de guerra, tem os tons sentidos da lírica meridional:

(3) E. Renan, na Vida de Jesus; edição de 1876, pag. 39.

“Grande Gonçalves Dias! Desses paramos

Onde viver sonhava, e reina agora

Tua alma gloriosa envia, oh! Mestre,

Envia-me o segredo da harmonia

Que levaste contigo. Assim, apenas,

Meu santo empenho vencerei contente.» (4).

G. Dias de ha muito merecia o culto da admiração de Varella.

Diz o Solo mavioso, que se lê no primeiro dos livros do jovem poeta falecido:

“Como poderá um profeta

Sofrer tantas agonias I

Busco a tumba de um poeta,

Do grande Gonçalves Dias.”

“Pergunta aos mares profundos,

Pergunta ao destino, ao fado,

Ao Deus criador dos mundos

Por esse bardo inspirado.”

“Enfermo, exausto, cansado,

Sofrendo um pesar insano,

De seu país exilado

Teve outra pátria — o oceano.”

(4) Evangelho nas selvas, canto I, capítulo X.

“Folga! Espíritos te falam,

Mestre da terra onde choro!

Teu corpo ondinas embalam...

Lendo teus cantos te adoro. » (5)

Mas ele o relê agora mais do que nunca. Versando assiduamente as produções do poeta caxiense, o fim de Varella é saturar-se das suas harmonias, é aprender a cadência que conhece por intuição, mas incorreta e barbaramente, é pedir lições ao mestre para a obra cuja magnitude levará o seu nome aos posteros. O Evangelho nas selvas, no qual a inspiração de Varela aparece aumentada em belezas e diminuída em defeitos, dá a medida do horizonte por onde ele discorria as vistas nos últimos tempos da desperdiçada vida, cansado do lirismo desordenado de que revestia assuntos de pequeno tomo, e que ele dissipava com a prodigalidade inconsciente dos primeiros anos em impressões efêmeras a que dava aliás, formas admiráveis, como na poesia intitulada Névoas (6), trata de elevar-se a regiões mais verdadeiras, em busca de ideais que representem antes um patrimônio da sociedade, uma conquista dos tempos, uma aspiração ou um culto da humanidade, do que uma concepção arbitraria, uma beleza fugaz do seu aéreo pensamentear. Deixa a poesia vã e leve pela poesia severa e ponderada, a canção pelo poema ou ensaio de poema. Chegara para ele o momento comum a todos os grandes engenhos que tem consciência do que valem — o momento de pensar na aquisição da imortalidade, esse momento solene e supremo que leva Homero, Virgílio e Camões a volver-se para a pátria, Dante, Milton e Klopstock para a fé, objetos que em si mesmos trazem um cunho de permanência, que é o primeiro estimulo para quem busca eternizar o nome.

(5) Noturnas.

(6) Noturnas.

Alguns artistas chegam á imortalidade sem terem pensado nela B. de Saint-Pierre tão longe estava de conhecer o mérito do seu livro admirável Paulo e Virgínia que resolveu entregar o manuscrito ás chamas depois da leitura feita a Buffon e outros literatos, que, como ele, não descobriram aí a impressão de um desses beijos com que acaricia a fronte dos seus privilegiados a mens divina; e somente o entusiasmo que posterior leitura produziu no pintor Vernet o fez mudar de resolução. Outros há que elegem o assunto, planejam a realização, arquitetam a forma, não perdendo nunca de vista o polo magnético do renome. Varella pertence ao numero destes. Natureza expansiva, ele não pôde reter no espírito o conceito que faz da sua própria

obra, e é o primeiro que proclama a imortalidade dela:

“Oh!Não!Não morrereis, meus pobres cantos!

Não pássaras nas trevas, deslembrada

Musa cristã, que peregrina foste

Pedir inspiração ao frio solo

Do sombrio jardim das Oliveiras,

E do suor de sangue te molhaste!

Que subiste contrita, de joelhos,

Beijando as pedras, inundando a terra

De lágrimas de amor e de piedade,

A terrível montanha do Calvário!

Que entre os negrumes de sinistra noite,

Rotas a vestes, os cabelos negros

Soltos aos frios ventos do infinito,

Junto ás santas mulheres pranteaste

Sobre a lousa do Deus supliciado!

Que o viste erguer-se vencedor da morte,

Buscar o mundo, consolar os tristes,

Prometer-lhes voltar no fim das eras,

E remontar aos céus em nuvens d'ouro!

Hão de te honrar os homens e as idades,

Senão por ti, por Esse, cujo nome

Santifica teus cantos maviosos!

Pássaras ao porvir, ó casta Musa!”( 7)

(7) Evangelho nas selvas, canto I, capítulo XII.

Estudemos, porém o poeta na ordem cronológica das suas obras. Demais, o Evangelho nas selvas, pela importância e pelos méritos, exige um exame especial que sairá a lume oportunamente.

Um dos traços característicos da poesia de Varela é a imitação ao lado de muita originalidade. Quando em suas produções se nos deparam ideias, planos e versos pertencentes a outros poetas seus irmãos no gênero e no gosto, uma observação nos ocorre: “Por que razão um poeta tão gracioso e tão fecundo se mostra tão pouco escrupuloso? Quem tem em si mesmo tantos tesouros de preço, porque se há de adornar com joias de outrem, que lhe não vem aumentar o valor e brilho natural?”.

Há, todavia, uma explicação para isto. Por via de regra os artistas que se inspiram na natureza adquirem o hábito de imitar, que insensivelmente os domina sem que nisso entre a vontade. Semelhantes artistas têm por principal atrativo observar e reproduzir as cenas ou os espetáculos que os comovem, são pintores. A sua alma é um espelho, mágico onde se refletem os esplendores ou as sombras do mundo, com todos os acidentes, contornos e ondulações. O mesmo fenômeno dá-se com o que os impressiona pela leitura ou pelo estudo. As ideias simpáticas ficam-lhes impressas na tela da inteligência, donde saem modificadas pela potência do gênio. Não raro o lavor íntimo, a ação individual o subjetivo é impotente para transformar inteiramente a criação estranha ou peregrina. Então aparece na reprodução

dela mais de um traço da primitiva originalidade, que facilmente se distingue da segunda. A nova criação denuncia a cópia ou ao menos a fonte donde proveio, não obstante a direção ou o intuito diferente que lhe deu o gênio do reprodutor. É o que explica o contraste que se nota em quase todos os livros de Varella.

Mauro o escravo, poemeto com que se abre o livro Vozes da America, é evidentemente vazado nos moldes do Y—juca—pirama. Começa quase pelas mesmas palavras. O diapasão é o mesmo.

“Na sala espaçosa, cercado de escravos,

Nascidos nas selvas, robustos e bravos,

Mas presos agora de inundo terror,

Lotario pensava, Lotario o potente,

Lotario o opulento, soberbo e valente,

De um povo de humildes tirano e senhor”.

Há aqui, posto que remoto, um reflexo da primeira estrofe do y—juca—pirama (8):

«No meio das tabas de amenos verdores,

Cercados de troncos, cobertos de flores,

Alteiam-se os tetos de altiva nação;

São muitos seus filhos, nos ânimos fortes.

Temíveis na guerra, que em densas coortes

Assombram das matas a imensa extensão.”

(8) “Poesias” de Antônio Gonçalves Dias, tomo II. Edição de 1876, pág. 14.

O escravo que se insurge contra o fazendeiro parece com o índio que revoluciona a taba. O canto da irmã de Mauro traz à reminiscência o canto de morte que entoa o prisioneiro condenado ao sacrifício. A ação de um diverge da ação do outro poema; a estrutura, porém, é quase uma só.

Não ficam aí os empréstimos que bem podiam ser dispensados. O Sr. F. Quirino dos Santos, que prefaciou a edição das Vozes da America de 1864, referindo-se

à poesia Infância e velhice, escreve estas linhas :

“Estou lembrado de que o autor me disse uma vez que esta e mais algumas peças do seu livro eram imitações”.

O próprio Varella declara que as poesias Aurora, Ecos do cárcere e Exilado, “foram inspiradas pela leitura das belas páginas bíblicas de Lamartine; que Child-

Harold foi imitada do canto a Ignez, no poema do mesmo nome, de Byron.”

Outros exemplos de imitação:

“Porque te afoga, ó irmã dos anjos,

Nas ondas negras de um viver impuro,

E as santas formas do cinzel de Deus

Manchas do vício no recinto escuro? “

Esta estância faz acudir á lembrança a primeira da poesia — Frei Bastos, de Junqueira Freire (9):

“Porque te afogas, Bossuet brasíleo,

No imundo pego da lascívia impura,

Porque teus louros triunfais nódoas

Nas roxas fezes de azedado vinho?”

Na poesia que se intitula — Recitativo escreveu Varela:

“Se eu te dissesse, Madalena pálida,

Fundo mistério que meu peito oculta,

Si eu te dissesse que amargura estolida

Em mar de prantos meu viver sepulta;

Si eu te contasse que tristezas fúnebres

Meu seio rasgam por febrentas horas,

Que chamas vivas, que delírios lúgubres

Cercam-me o leito de infantis auroras;

Dize, impiedosa, que vigor satânico

Fez de minh'alma o pedestal da tua;

E a teus olhares me encadeia fátuo

Bem como o lago refletindo a lua »

(9) Inspirações do claustro, edição de 1855, pág. 108.

Estes versos, que tem o cunho da originalidade e graça do poeta, revelam, entretanto, a leitura dos da poesia — Amor e medo de Casimiro de Abreu (10), que há bem poucos anos eram recitados nos primeiros salões do Império:

“Ai! Se eu te visse, Madalena pura,

Sobre o veludo reclinado a meio,

Olhos cerrados na volúpia doce,

Os braços frouxos, palpitante o seio!

Ai! Se eu te visse em languidez sublime

Na face às rosas virginais do pejo;

Tremula a fala a protestar baixinho...

Vermelha a boca soluçando um beijo!...

Diz: que seria da pureza d'anjo,

Das vestes alvas, do candor das asas?

Tu te queimaras, a pisar descalça,

Criança louca, sobre um chão de brasas! “

(10) Nas Primaveras, edição de 1859, pág. 153.

Dessa imitação dos poetas que naquele tempo gozavam de mais fama nos círculos literários Varela passou a uma originalidade mais caracterizada. A imaginação embebe-se-lhe mais fortemente na natureza. Daí toma os mais graciosos painéis, o colorido das suas alvoradas. A sua individualidade afirma-se com todos os tons do seu estro impregnado nos primores da criação. O poeta tem plena consciência do que vale, e entra sem receio no mundo das visões fagueiras que reproduz com o donaire, a frescura e a animação subjetiva.

Não pede mais inspirações a Byron, ou a Zorrilla ou a Lamartine, ou a Casimiro de Abreu; pede-as aos luares intertropicais, ás flores das várzeas nativas, ás paisagens e louçanias da sua terra. Ele lê os poetas não tanto para imitá-los, como principalmente para conhecê-los. Canta o índio, a montanha, a floresta, o sertão, a roça, enfim a vida brasileira.

Por esse tempo uma questão internacional veio estremecer as relações do Brasil com a Grã-Bretanha. O nosso patriotismo levantou-se em todo o Império, sem distinção de partidos, para condenar a arrogância do ministro inglês Christie. Foi uma das mais gerais e uníssonas manifestações que no Brasil ainda se viram.

Varela não ficou atrás do país, antes se mostrou na vanguarda, pela imprensa, contribuindo com o óbolo da sua musa para a magnitude da represália. O Pavilhão

auriverde não teve outra origem.

Força é porem reconhecer que nos cantos que compõem este manifesto de guerra a musa fluminense se revela inferior á grandeza do assunto, e deixa fora de dúvida que a poesia explosiva e patriótica não encontra no seio dela o conchego e o calor, tão propícios às liras e outras canções. As cores sanguíneas que purpureiam os seus poemas amorosos em suavíssima languidez aparecem pálidas e vagas; as harmonias que as paixões campestres, os dramas bucólicos, os costumes roceiros exaltam e requintam não tem aí a vibração marcial que a natureza do objeto devia não exigir, mas impor. Tudo isto vem provar que Varela não tinha a inspiração guerreira, mas sim pacífica. O poeta que louvou garbosamente

o astro das batalhas (11) no ocaso da glória,

quando as fontes do canto não podiam ser outras senão a tristeza, a resignação e a saudade, não o louvaria jamais com igual sucesso, no momento mais solene da sua vastíssima parábola, quando se arriscava a sua sorte e a de mais de uma nação em um só campo de batalha, em Waterloo, donde tomou assunto a musa do Sr. Magalhães, muito mais enérgica e belicosa, para remontar-se altiloqua, embora pouco original, ás esferas da epopeia (12).

(11) Vide a poesia Napoleão.

(12) Vide “Suspiros poéticos e saudades”, edição de 1836, pág. 263.

São do Pavilhão auriverde estes versos a D. Pedro II:

“Oh! Não constatas que teu povo siga

Louco sem rumo desonroso trilho!

Se és grande, ingente, se dominas tudo,

Também das terras do Brasil és filho.

.

Abre-lhe os olhos, o caminho ensina,

Aonde a glória em seu altar sorri;

Dize que vive, e viverá tranquilo,

Dize que morra, e morrerá por ti.”

Se eu para muitos já não passasse por dominado de intolerante espírito de provincialismo; se a alguns não parecesse que só acho beleza e merecimento, elevação e grandeza nas coisas do norte, contra o que, aliás protesta o presente estudo sobre um poetando sul, diria, não por me comprazer em confrontos que podem ferir melindres, mas por obedecer, pura e simplesmente, ao meu dever de critico, diria que, quando Varella dava de

se copia tão pouco lisonjeira, o ofício da poesia heróica andava em grande altura em uma das províncias do norte, em Pernambuco. Com o mesmo título — A D.

Pedro II e sobre o mesmo assunto — a questão anglo-brasileira — um poeta também jovem, Victoriano Palhares, publicava estrofes de patriotismo rutilante, entre as quais se encontram as seguintes:

“............................Quando a Inglaterra

Vier junto a teu solo bradar — Guerra!

— Guerra!... Teu povo bradará também.

E então Senhor, verás como é bonito

Inteiro um povo levantar-se a um grito,

Inteiro um povo sem faltar ninguém.

Ninguém 1 Que o mais temível estrangeire

Não há de vir no solo brasileiro

Uma afronta cuspir-lhe ao pavilhão;

O filho do Brasil não mente á herança

Recebida de heróis : nutre a esperança

De vencer sempre ou de morrer Catão.

................................................................

“Chegou-te a vez, oh! Ave de rapina!

Estende a garra: em vil carnificina

Não hás de a fome saciar aqui.

Desdobra as asas, atravessa as zonas,

O caboclo, do Prata ao Amazonas,

Entesa o arco, sôfrego por ti.” (13)

Pouco tardou que se oferecesse nova ocasião, mais solene que a primeira, para de todo ficar assentado que o estro de Varela não se acendia na chama do patriotismo heróico; foi à guerra do Paraguai. A luta chegou a travar-se e encarniçar-se. O Brasil derramou copioso sangue. Alguns momentos sombrios baixaram, como aves agoureiras, sobre o gigante da América do Sul, fora dos seus domínios; e dentro deles houve por vezes períodos, senão de desanimo, de cansaço. O luto e as lágrimas mostraram-se de mistura no lar da família. Pois bem. Quando o triste drama da viuvez e da orfandade velava de crepe a face da pátria, a graciosa musa de Varela, conhecendo talvez que a não fadara a natureza para cantar, como Mickiewicz, as grandes desgraças públicas, e incitar a nação a novos e repetidos sacrifícios e heroísmos, emudecia, ou se cantava era outra a alma dos seus cantos.

A musa do norte, porém, vibrava aos alvoroços guerreiros. Palhares formava, dia a dia, a cada notícia de um feito glorioso, os hinos que pela segunda vez viram a luz, coligidos em um livro (14), onde se encontram exaltações formosíssimas; e Tobias de Menezes, à frente da mocidade acadêmica, nas ruas do Recife, produzindo

verdadeiro delírio, levantava o entusiasmo popular com o seu verbo ao mesmo tempo épico e lírico, ao mesmo tempo mimoso e coruscante, de que pode dar ideia, ainda que vaga, a décima seguinte :

(13) Mocidade e tristeza 1866: pág. 102. (14) Centelhas, 1870.

“Juntemos as almas gratas

De colegas e de irmãos;

O vento que acorda as matas

Nos toma os livros das mãos.

A vida é uma leitura;

E quando a espada fulgura,

Quando se sente bater

No peito heróica pancada,

Deixa-se a folha dobrada

Em quanto se vai morrer.” (15)

(15) Dias e noites, edição de 1881, pág. 154. Nota do editor.

No mais aceso da luta com o Paraguai, quando, para assim dizer, era todo o Brasil heróico, apareceram os Cantos e fantasias (16), o mais lírico dos livros de Varela. Nenhuma palavra ao menos indica, ainda que por alto, nesse livro as mesmas inquietações e incertezas

que traziam suspensa entre a vida e a

morte, entre a ideia da vitoria e a de uma paz desairosa, a comovida pátria. Vendo desfilar batalhões, ouvindo soar instrumentos marciais, assistindo a partida de bravos que tinham por mais certo o sono eterno em chão ingrato e inóspito que a volta ao ninho seu paterno, o poeta pudera, em completa abstração, prosseguir a prática com os autores prediletos e, estranho à lida em que se absorvia a nação, gerar cantos onde ressoa a vibração cadente da sua alma apaixonada. Não faço aqui este reparo com o intento de censurar a indiferença fecunda a que devem as letras jóias de tão alto valor. O meu fim é tornar bem claro o caráter, quase exclusivamente lírico, do gênio de Varela.

(16) Edição de Paris – São Paulo, 1865.

O que há nos Cantos e fantasias é frescura balsâmica, sentimentalidade meiga, vivacidade sonora e melancólica. Serão reminiscências de Byron, Goethe, V. Hugo e Heine “seus mais estimados modelos”, segundo diz o amigo que lhe prefaciou o livro, o Sr. Dr. Ferreira de Menezes? Será ainda refração dos esplendores ocidentais de Soares de Passos e Musset, “cujas vozes ele casa às suas na mais doce das harmonias?”. Será influência nervosa de escritores espanhóis, de cuja poesia “se encontra muito vestígio em mais de uma página dos Cantos e fantasias?”. Será o eco subterrâneo, de além-túmulo, de Chateaubriand, Beranger, Vigny e Delavigne, que o Sr. Dr. Ferreira de Menezes diz “lhe foram também inspiração fecunda?”. Seja o que for, ou obra dos mestres, ou manifestações naturais do talento com que a natureza o privilegiara,

em caminho para o amadurecer, o certo é que aí o sentimento excede a medida comum, a harmonia passa da craveira por onde afinam muitas e ilustres liras ; e, em todo o caso, si ha nessas plangentes melodias ecos de outros poetas, as vozes do autor dos Cantos soam mais alto que esses ecos intrusos, e põem em relevo a sua individualidade sonhadora. Se há neles formas estranhas, músculos e nervos que traem pessoalidades peregrinas, a seiva interior que dá vida a essas formas, o sentimento que agita esses músculos, a alma a que esses nervos obedecem, é do poeta brasileiro. Não conheço em Zorrilla, nem em Mürger, nem em Longfellow, nem em nenhum outro dos poetas mais justamente estimados e célebres, versos mais ternos e maviosos que os dos Cantos e fantasias que reproduzo em seguida:

“Lembras-te, Iná, dessas noites

Cheias de doce harmonia,

Quando a floresta gemia

Do vento aos brandos açoites?

Quando as estrelas sorriam,

Quando as campinas tremiam

Nas dobras de úmido véu?

E nossas almas unidas

Estreitavam-se, sentidas,

Ao langor daquele céu?

Lembras-te, Iná? Belo e mago

Da nevoa por entre o manto

Ouvia-se ao longe o canto

Dos pescadores do lago.

Os regatos soluçavam,

Os pinheiros murmuravam

No viso das cordilheiras,

E a brisa lenta, tardia

O chão relvoso cobria

Das flores de trepadeiras.

Lembras-te, Iná? Eras bela;

Ainda no albor da vida,

Tinhas a fronte cingida

De uma inocente capela.

..........................................

Que é feito agora de tudo?

De tanta ilusão querida?

A selva não tem mais vida,

O lar é deserto e mudo!

Onde foste, ó pomba errante?

Bela estrela cintilante

Que apontava-me o porvir?

Dormes acaso no fundo

Do abismo tredo e profundo,

Minha pérola de Ophir?

Ah! Iná! Por toda parte

Que teu espírito esteja,

Minha alma que te deseja

Não cessará de buscar-te!

Irei às nuvens serenas,

Vestindo as ligeiras penas

Do mais ligeiro condor;

Irei ao pego espumante,

Como da Ásia o possante,

Soberbo mergulhador.

Irei à pátria das fadas

E dos silfos errabundos;

irei aos antros profundos

Das montanhas encantadas.

Se depois de imensas dores

No seio ardente de amores

Eu não puder apertar-te,

Quebrando a dura barreira

Deste mundo de poeira,

Talvez Iná, hei de achar-te.”

O Cântico do Calvário é uma das nênias mais elevadas e sentidas que ainda saíram do coração humano. O coração do poeta entrou nessa elegia grandiosa com todos os pálidos esplendores da imaginação e da saudade. A sua alma, diluída aí em lágrimas que parece terem sido a tinta cristalina onde ele ensopara pena de rama tão loura, como eram os seus cabelos, pranteia inconsolável a ausência daquela parte íntima — seu filho — que levara consigo metade das suas ilusões, da sua fé e do seu amor á vida. É' uma melodia travada de notas soturnas e de notas límpidas — consórcio delicioso da mágoa com o prazer de revelar o pungir dela.

Nos Cantos meridionais, que se seguiram aos Cantos e fantasias, a individualidade de Varela vem revestida de afirmações mais positivas. Com o mesmo lirismo encontra-se nele mais meditação. O tempo, a experiência, o estudo apresentam ali resultados mais diretos. O olhar do poeta desce das fantasias douradas, e pousa nas realidades sombrias da terra. O seu talento descritivo desenvolve-se. As poesias A cidade e A roça são quadros que se iluminam com todas as tintas da verdade.

Falam nessas páginas o crítico e o juiz ao lado do pintor e do poeta. Este revela-se sempre entusiasta no meio da criação; admira-a e canta-a. Mas onde sobressaem, como si fossem relevos, os traços finos do seu temperamento, que muitas vezes cai na sátira ferina e mordaz, é em Mimosa, e em Antonico e Cora, poemetos de uns tons realistas, e de um descritivo psicológico que manifesta quanto ele estudava a sociedade através dos flancos que ela mostra feridos pelo vício ou simplesmente

pela fragilidade natural.

É para mim fora de dúvida que o espírito de Varela amadurecia no meio dos revezes e irregularidades da vida agitada, como amadurecem os frutos nas árvores

tocadas alternativamente pelos raios do sol e pelas torrentes da procela.

Quase terminada a ridente estação dos sonhos, estava habilitado a conhecer o mundo em variados aspectos, e a produzir quadros mais naturais e verdadeiros. Tudo nos Cantos do ermo e da cidade, último dos seus livros publicados em sua vida, acusa um cunho de madureza que bem demonstra quanto era progressivo aquele espírito para muitos perdido.

As formas descritivas que parecem confusas, trazendo o selo da imitação, em Mauro o escravo; que são incompletas e angulosas em Gualter, o pescador; que são flácidas e túmidas por extremo nas Névoas e na Enchente; que são vagas ou delirosas na Madrugada e beira mar, na Várzea e na Noite saudosa; que com muitas linhas harmônicas apresentam algumas linhas contraditórias na Cidade e na Roça, cores exageradas na Esperança, contrastes ásperos e impertinentes em Mimosa, arredondam-se, amaciam-se, aperfeiçoam-se nos Cantos do ermo. Infelizmente não é este o mais delicioso dos seus livros. As incorreções da mocidade têm o seu ritmo, como as da natureza a sua graça. A arte, sujeitando a inspiração a uma medida convencional, mutila não raro engraçadas imperfeições, que são para os produtos da imaginação o que é a espuma para as enchentes, o que é o suor para a maternidade.

Há talvez heresia neste conceito que pode ferir os ouvidos de muitos ortodoxos na religião das letras.

Sei bem que Goethe, tratando da forma, dizia: a divina forma. É inegável porém — e bastará o exame para dar-me razão — que absoluto esmero faz o escrito frio ou empertigado. Raro será encontrar em uma produção de forma irrepreensível o sentimento virgem e espontâneo, sem o qual a arte fere a vista, mas não atinge a sensibilidade. As incorreções da poesia do povo não lhe amesquinham nem empobrecem a vivacidade nativa, antes lhe servem de matiz; são o selo da sua concepção larga e franca: entretanto o povo é muito mais incorreto do que se permite ser a um escritor culto. Está claro que, pensando assim, não quero erigir a incorreção grosseira em elemento da estética; fora malicioso, ou obcecado, e, quer n'um quer no outro caso, não fora justo quem tirasse das minhas palavras esta conclusão bárbara. O que eu quero é que a forma não afogue a essência; é que o exagerado zelo por aquela não absorvi de tal modo o artista que não tenha para esta senão um respeito secundário. A arte será tanto mais perfeita quanto menos sacrificar a natureza.

A poesia intitulada Estâncias distingue-se por mimos de suave honestidade, que realçam a ternura sonora do poeta.

Qual é o ídolo a quem ele queimou tão fragrante incenso? Uma santa ou uma mulher adorável? Não entrarei nesta apreciação. O culto não desvale quer se aplique á primeira, quer á segunda. O aroma, modesto e incorrupto, é digno de ambas.

As composições de mais alento são Acusmata, Sede e Leviandades de Cíntia.

Em mais de um lugar do livro descreve-se o espírito da cidade em luta com o da natureza. A aversão á vida social é um sentimento particular dos poetas contemplativos. Varella traz este sentimento aceso a cada momento, protestando vivamente contra o ruído, o egoísmo, as paixões, as falsas tintas que particularizam os grandes centros de população.

Todos sabem que a poesia contemplativa tem o primeiro elemento na solidão. Neste ponto Varella segue direção divergente.

Ele não é um poeta solitário. A sua alma sumamente expansiva e amorosa não se compadeceria sem violência com o mundo limitado á pessoa dele à natureza circunstante. O seu ideal não está além das nuvens em uma mansão sonhada pelos poetas místicos; está na terra adorada com as suas múltiplas magnificências — as florestas profundas, os picos elevados, os rios esclarecidos peles astros, sem excluir a mulher, sem excluir o homem, sem excluir uma certa sociedade, onde se deparam sentimentos e hábitos que mais se casam com os seus gostos e inclinações. Varella é o cantor das meias malicias e das meias inocências existentes nessa região pitoresca e animada, que não é a cidade deslumbrante nem a solidão bravia, que é simplesmente o campo ou a roça ou o mato, isto é, um teatro modesto de folguedos ingênuos, amores tímidos, graças vergonhosas, mais virtudes que vícios, mais natureza que arte, mais desinteresse que calculo— nessa região que está para a civilização como o arrebol está para o dia, nesse plano onde perfis garridos e imagens toscas se debuxam sob uma luz crepuscular que os não deixa ver em completo relevo.

Se a minha critica não se engana, Varella ode ser aferido pela poesia — A roça, que é uma das que trazem mais fundamente impresso o sinal da sua psicologia poética:

”O balanço da rede, o bom fogo

Sob um teto de humilde sapé;

A palestra, os lundus, a viola,

O cigarro, a modinha, o café;

Um robusto alazão, mais ligeiro

Do que o vento que vem do sertão,

Negras crinas, olhar de tormenta,

Pés que apenas rastejam no chão;

E depois um sorrir de roceira,

Meigos gestos, requebros de amor,

Seios nus, braços nus, trancas soltas,

Moles falas, idade de flor;

Beijos dados sem medo ao ar livre,

Risos francos, alegres serões,

Mil brinquedos no campo ao sol posto,

Ao surgir da manhã mil canções :

Eis a vida nas vastas planícies

Ou nos montes da terra da Cruz,

Sobre o solo só flores e glórias,

Sob o céu só magia e só luz.”

Estes mesmos sentimentos manifestam-se em Acusmafa que, aliás, me parece reverbero do estro de algum poeta alemão. É uma produção de suavidade inefável. Dir-se-ia bebida em Schiller, prestimoso idealista que ainda por nenhum foi passado, nem no mimo da forma, nem na delicadeza do conceito.

As árvores, as flores, o rio, as estrelas, os espaços, as choças em deliciosa conspiração têm vozes para increpar o poeta de havê-los menosprezados pelos brilhos especiosos da cidade.

As árvores dizem:

“..............................Nessa sombra,

Que alongamos do chão, verás o leito

Onde tantos momentos repousaste.

Ah! Eras belo nesse tempo! A aurora

Tinha-te posto toda a luz nos olhos...

Quando passavas teu caminho ledo

De frescura e de folhas alfombravamos.

E tu partiste, ingrato, e tu partiste!

E trocaste o sossego do deserto

Pelo fulgor das salas dos palácios!

Pelos fingidos risos da mentira!

Pela voragem negra onde soluças!”

As flores dizem:

“Poeta, a trepadeira solitária

Que se enrosca lasciva ao duro tronco

Do cedro secular; a flor guardada,

Entre os galhos do ipê, nas grossas folhas

De alpestre parasita; a mole acácia;

O manacá cheiroso que se ostenta

A beira d'água, pensativo e triste;

-Os festões do ingazeiro e as açucenas,

Todos te amavam, te adoravam todos.

Ai! Um dia esperamos-te debalde!

Tinhas partido, ingrato! Abandonaste

Nossa beleza cândida e modesta

Por essas sombras doentias, pálidas,

Que entre o lustre do baile se evaporam!

Por essas múmias sensuais que pejam

As alcovas de sórdidas pocilgas.

Se tivesses ficado, oh! Cada noite

Uma de nós se erguera embalsamada

Para as lendas contar do nosso reino!

Não o quiseste, doido, e agora é tarde!”

O rio diz:

“Não mais te vejo, nem te escuto ao menos

Da loura Grécia as naiades chamando!

Nem a meus flancos murmurando idílios,

Nem sobre as águas a guiar teu barco!

Que fizeste, infeliz!...................................”

Vejamos o que é o Diário de Lázaro.

Depois de dez anos de ausência, o protagonista volta á pátria. Somente o que nunca se achou em condições idênticas não compreenderá a intensa comoção que o poeta descreve nestes versos:

“..................................Eis-me de novo

Em teu seio sagrado, ó minha pátria!

Dez anos de saudades, de amarguras,

Mas também de esperanças! Filha esbelta

Dos sonhos de Colombo, abre-me os braços!

.................................Quando brilhante

Aos fulgores da aurora, dentre as ondas

Ontem te vi surgir nos horizontes,

Minha alma estremeceu de um gozo imenso,

Meu coração pulsou cheio de orgulho,

Quente de entusiasmo, e transportado,

Saudei chorando teus erguidos montes,

Que me viram partir triste e abatido.

Eis-me de volta. Os prantos, as insônias

Descoraram-me o rosto, as duras lidas

Quebrantaram-me o corpo; mas o espírito

Exulta em seu triunfo!”

A descrição da baía do Rio de Janeiro não tem aqui as linhas esculturais dos conhecidos versos de Macedo (17).

É sóbria, rápida, complexa, como a impressão do que chega e que revê de um só lance de vista a um só tempo, e sem a pousar em nenhum objeto mais que os instantes necessários para o reconhecer o céu, a terra, o mar, as linhas e as cores, as faces boleadas e os perfis agudos do torrão natal. Macedo prolonga-se. E' o poeta que faz a pintura para que o leitor conheça todo o plano onde se deve desenrolar o novelo da ação concebida pela sua imaginação. Varella põe os versos na boca do próprio protagonista, o qual em si mesmo tem todas as visões, que, depois de adormecidas por muito tempo, despertam subitamente não mais visões, porém, realidades.

(17) Na Nebulosa, pág. 2.

“Terra de Santa Cruz, quanto és formosa,

Quanto és formosa, altiva Guanabara!

Como a noiva do rei, o sol do estio

Tisnou-te as belas faces, e o sereno

Molhou-te as trancas negras, e suspiras

Molemente inclinada á beira d'água!

As estrelas namoram-te do espaço,

Lambem-te os pés as vagas gemedoras,

E arredados de ti velam atentos

Os filhos do dilúvio, horrendos monstros,

Em cujos dorsos, êmulos do bronze,

Do raio a chama há laborado embalde.”

O protagonista fora buscar um título científico em terras estrangeiras. O velo de ouro que lhe deve ser dado como prêmio da conquista em que consumiu dez anos ralados de saudades é a mão de Lucilia. Apenas chegado, corre, voa a S. Paulo, ás margens do Tietê. Ali é que está o reino encantado onde reside a ilusão que lhe foi alento, ânimo, alma no prolixo exílio. Com

esta ilusão abraçara-se por algum tempo uma imagem venerável e santa — a imagem de sua mãe. Um cruel contraste o esperava, porém, ali. Ao lado de Lucilia havia sombrio vácuo. A mãe falecera quando ele estava ausente.

“Como feliz pisara estes lugares,

Si ainda encontrara minha mãe! Coitada!

Ha dois anos que é morta. Nem os risos,

Nem os meigos carinhos de Lucilia,

Nem os cuidados de seu pai dissipam

A nuvem de remorsos que me oprime I

Fui ontem ver seu derradeiro abrigo.

Era á tardinha. O vento da montanha

Gemia tristemente na espessura

Dos bastos ervaçais do cemitério,

E sobre a cruz humilde que marcava

Da mais terna das mais o frio leito

Um sabiá cantava tristemente.

As rosas melancólicas da campa,

As áureas sempre-vivas, que sorriam

Nessa paragem onde apenas nascem

O cardo, a urtiga, o feto, o estramônio,

Traíam-me os cuidados de Lucilia.

Inundados de lagrimas os olhos,

Ajoelhei-me sobre o chão revolto,

E pus-me a soluçar...”

Quando se vê enlaçado àquela que é a concentração mística de todos os seus enlevos, ele reputa-se tão feliz que se entristece. É tão curta a felicidade, tão breve o sorriso, tão pontual a dor, tão assídua a lágrima na vida. Eis o que escreve no seu diário:

“Meu Deus! Senhor meu Deus! Eu tenho medo

Desta dita inefável, que derramas

Sobre minha existência, em almos dias,

Em noites sem iguais! Sim! Quase sempre

No romance da vida a desventura,

Os desastres cruentos se anunciam

Por um sublime prólogo! Perdoa-me,

Perdoa-me, Senhor, si audaz, bafejo

Meu hálito de duvida na face

Do liso espelho que teus dons reflete.”

Seis meses depois o abutre do infortúnio, que lhe roçara o espírito com a asa negra em forma de vaga sombra entre as plácidas claridades da vida deleitosa, pungia-o com as garras aduncas, e das carnes vivas lhe escorria sangue. É digna de menção, pelos traços realistas, verdadeiros, e tão conhecidos de todos nós, a parte que se refere ao exame dos médicos :

“Os médicos chegaram. Virgem santa!

Quanta resignação e paciência

Não me foram precisas! Que de exames,

De frívolas questões, palavras vagas,

Irresolutas, tímidas respostas,

Estéreis discussões! É necessário

Que eu parta novamente, e só. Mesquinha,

Triste ciência? Quando nada enxerga,

São seus recursos e remédios certos

A mudança de clima, o ar, a vida

No meio das montanhas, tudo quanto

Sem escolas, sem livros, sem doutores

A sabia natureza nos ensina.”

Termina aqui a primeira frase do poemeto, o preâmbulo da grande agonia.

Entremos na última frase.

Não podendo resignar-se á separação, o enfermo deixa a alegre e pitoresca vivenda para onde, o afastaram a sentença dos médicos e as precauções discretas do sogro. Não encontra a mulher; o sogro fogo ao seu contacto. Qual a causa deste afastamento? O enfermo procura penetrar o mysterio o encaminha-se um dia ao aposento do pae de Lucilia. Foi cruel a revelação que ello lho tez. O seu mal era a morphéa. O poeta põe nos lábios do infeliz estas expressões amargas:

“Meu Deus! Eu vi de perto

A fome, a peste, a febre, o desalento;

Senti soar-me nos ouvidos ébrios

O tinido dos guizos da loucura;

Vi de perto o delírio, o suicídio,

O ateísmo e o nada; e firme e forte

Encarei-os sorrindo. Mas o efeito

Destas fatais palavras de meu sogro

Não as explica o raio.”

Então já era inútil o mistério. O enfermo estava fora da saudável comunhão da família. Todas as suas relações circunscrevem-se ao estreito aposento que se lhe destinou para curtir a desgraça asquerosa. Eis como o poeta pinta a fatal desclaridade que acompanha ordinariamente o morfético:

”..............................Cada dia

Um escravo depunha-me o alimento

Do meu negro covil à exígua porta

E mudo se afastava. Meus vestidos,

Os trastes de meu uso eram puxados

Com asco e nojo á ponta de uma vara;

Si novos me traziam, necessário

Era me buscá-los pelo chão, de rastos

Como um velho rafeiro.”

Uma noite o acaso pareceu vir em seu auxílio, e oferecer-lhe meio de pôr termo ao padecimento descomunal. Ele foi despertado por um corpo de contacto desagradável. O impertinente hóspede era uma cobra. Apenas a reconhece, pensamento consolador lhe ilumina a tristeza imensa do espírito. Célere, precipite, busca alcançá-la com as mãos para que ela corte com o dente venenoso

o fio da sua abjeta existência. Mas a própria cobra fugiu-lhe por entre os dedos inflamados. Então lhe ocorre novo pensamento, e este é decisivo — o do suicídio pela violência. Já ia contundir a cabeça contra as portas, quando uma sombra lhe surge diante dos olhos. Era. Lucilia, que teve para ele os mesmos afagos e carícias de seis meses, de dez anos. Foi à última vez que se viram, foi a sua última noite conjugal. O enfermo apartou-se para uma morada lobrega e triste, onde teve o derradeiro sonho, entre reptis nojentos, seus fatais companheiros na desgraça atroz que arrastara na terra.

Apreciemos no seu todo a obra póstuma de Varella.

Um mal físico, servindo de fundamento de um drama angustioso, não é ideia hodierna, mas milenária. Já no século VIII, antes da nossa era, excita a musa hebraica a uma produção incomparável, que merece a admiração de todos os que se dão ao estudo das obras deixadas pelo gênio dos Hebreus. Renan considera-a o ideal do poema semítico.

Quero referir-me á história de Job, a qual dentre todas as das letras bíblicas, depois do Gênesis e dos Evangelhos, é a que mais fala a meditação e simpatia do povo.

E, todavia, ainda que essa ideia apareça no livro de Job revestida das proporções mais amplas, não deixou fechadas ao engenho do homem todas as portas do reino encantado do imaginar. Esse livro, porém, está fora de comparação. Há ali elevação que excede a da musa de Schiller, profundeza que vence a do gênio de Shakespeare (18). A maior miséria depois da máxima opulência, a maior desgraça depois da suprema felicidade, dores intraduzíveis sucedendo imediatamente a prazeres incomparáveis, enfim a fé e a paciência perto de descambarem na descrença e no desespero, dão a esse poemas originais contrastas, e o apresentam como o modelo mais perfeito na pintura do sofrimento humano. Não há notícia de aflições tão complexas na história da humanidade. O grande justo sofre como paz, como esposo, como amo, como cidadão, como possuidor de bens, como hóspede, como crente. Que mais resta para afligi-lo? Nada falta. Além da miséria, o desprezo, a ingratidão, a dor moral, tinha ele consigo a dor física, tinha a lepra desde a planta do pé até o alto da cabeça ”Sentado num monturo raspava com um pedaço de telha a podridão.” Tal é o drama que, quando “Roma não existia ainda; quando a Grécia tinha cantos harmoniosos, mas não sabia escrever; quando o Egito, a Assíria, a índia, a China haviam passado por muitas revoluções intelectuais, políticas e religiosas, um sábio desconhecido, fiel ao espírito dos antigos dias, escreveu para a humanidade nessa disputa sublime onde o sofrimento e as dúvidas de todas as idades deviam achar tão eloquente expressão”. (19).

(18) “O dom de Schiller é a elevação, a qualidade de Shakespeare é a profundeza” PHILARÊTE CHARLES, Estudos sobre a Alemanha, tomo 2º, pág. 261.

(19) Renan, “Livro de Job”, Estudo, páginas XXXVII, XLII e XLIII.

Não obstante o gênio desse artista privilegiado, a razão está dizendo que da sua tela alguns fios deveram, ficar sem a precisa trama. O livro de Job é mais uma colossal polêmica filosófica do que a pintura das dores físicas. A fé e a paciência sustentam ali luta incessante com a dúvida buscando conhecer o incognoscível. O poema satisfaz primeiro, necessidades do espírito que do coração.

No Leproso da cidade de Aosta (20), cuja veracidade tem por si o testemunho de Sainte-Beuve, começa a deixar-se entrever o amor que aparece caracterizado na Alma do Lázaro, e que se avigora ainda mais no Diário de Lázaro. Não só neste, mas em outros pontos, Alencar inspirou-se em Xavier de Maistre, e Varella inspirou-se; em Alencar.

O Leproso tem uma irmã que o ajuda a carregar a pesada cruz da desventura. O Lázaro, imaginado por Alencar, também tem uma irmã, Luiza, que lhe dá consolações. A irmã do Leproso morre; Luiza não morre, mas se ausenta; quem tem morrido é a mãe do doente e neste ponto o Diário de Lázaro imitou a Alma do

Lázaro.

Uma tarde o Leproso surpreendeu a se deliciarem em prática e carícias de plácida felicidade dois jovens casados de fresco, que faziam uma digressão pelo pequeno jardim que ele cultivava. Tem inveja á sorte dos amantes, e lamenta não ser um deles.

Não há no livro de Job, com ser tão sublime, uma cena idêntica, ou ao menos análoga a esta: os intuitos, do escritor bíblico são muito diversos. Mas no escrito

de Alencar esta cena se reproduz com proporções maiores.

A felicidade que o leproso de Xavier de Maistre tinha por impossível, encontrou o do autor do Guarani: amou e chegou a ser amado (21).

(20) Vide Obras completas do conde Xavier de Maistre, edição de 1876.

(21) Lede “0 ermitão da Glória — A alma do Lázaro”.

Em Varella esta idéia traz formas mais humanas. O morfético não inspira um mor impossível. A mulher não faz mais do que continuar a amar aquele, para quem se sentira atraída quando o aformoseavam a saúde e a mocidade, quando não aparecia deforme sob o manto de repugnante infortúnio, O amor aqui é mais natural Como dever, do que acolá como afeto, embora simples e inocente.

Outras analogias aproximam estas três produções modernas.

O pensamento de suicidar-se ocorre ao enfermo na narrativa de Xavier de Maistre ao ver-se privado de um cão, sua única e fiel companhia; na de Alencar é sugerido pelo encontro de um cão hidrófobo, do qual todos corriam horrorizados, menos o enfermo que foi direito ao animal, que aliás, lhe teve asco, e fugiu; na de Varella é sugerido pelo contacto de uma cobra que se lhe escorregou por entre os dedos e desapareceu, quando ele tentava retê-la pelo colo.

O leproso de Xavier de Maistre em certa ocasião mostra-se resoluto a pôr fogo na casa afim de se deixar destruir com ela, resolução que somente não levou a efeito por lhe terem lembrado as palavras da irmã que prometera não o deixar nunca, ainda depois de morta; o de Alencar escapa ás chamas que lhe atearam na casa, atirado

para fora por uma taboa sobre a qual caíra uma parede com grande violência.

A idéa do Diário, que é a forma do poemeto de Varella, encontra-se no romance de Alencar. Aquele tomou-a deste.

Enfim, há uma tal identidade de assunto e traça nestas três narrativas que não só pôde deixar do torpor muito provável que Varella se inspirasse em Alencar, e que Alencar se inspirasse de Xavier de Maistre.

Mas, bebida ou não em alheia fonte, a produção de Varella, senão pela execução, certo pelos encantos, é superior ás duas precedentes; é superior até a parte

que se lhe pode comparar, da Delfina do mal.

O meu juízo não flutua, não hesita um instante sobre a vastidão da linha traçada pela gentil produção de Thomaz Ribeiro. O seu amplo fito patenteia-se nas palavras seguintes:

“Tinha escrito o D. Jayme para a pátria, quis escrever a Delfina do mal para a humanidade.”

“Como era ás penas que me dirigia, tomei a resignação por assunto.”

“Pareceu-me que um dos maiores males da humanidade hoje era o desalento, e, como conseqüência fatal, a tendência crescente para o suicídio.”

......................................................................

“Foi outro dos meus intuitos por bem a nu as chagas. da miséria, e procurar que a poesia servisse a aproximar delas a caridade.” (22)

Mas em minha opinião esse largo desígnio requeria mais movimento e mais drama. Parece-me estreito o campo onde se devia pelejar tão grande batalha.

A lição é acanhada, e, se comove o leitor, não instrui a humanidade. Os sentimentos que ali se agitam são escassos e pouco impressionam. A resignação representada na leprosa manifesta-se antes como uma rara prenda, uma riqueza especial da sua alma, do que uma vitória contra as paixões terrenas, que exprimem a mais natural e a mais farta partilha do homem.

A história de Delfina, por alcunha Sagucha, conta-se em poucas palavras. Tinha ela uma filha, que era o seu amparo na solidão alpestre onde viviam. Veio um mau homem, um desertor, Antônio, e furtou Maria, deixando Delfina entregue aos seus próprios meios, isto é, á caridade

pública. Esta não lhe faltou. Delfina resigna-se. Eis a lição, que se admira mais pelos suavíssimos versos em que o inspirado poeta a faz pública, do que pela grandeza da aflição e diuturnidade da luta. São estes os versos (23):

(22) Vide Delfina do mal, carta-prefácio, pág. XIX.

(23) Vide Delfina do mal, pág. 96.

-“Ai! Se ainda me vivesse o meu querido Bento,

seria o meu amparo! O meu bordão seria!

O filho da minh'alma, ouvindo o meu lamento,

viria socorrer-me! Embora tu, Maria,

cega por amor impuro...

indigno amor!

me deixasses, sem cuidares

dos meus pesares,

da minha dor!

Deixa-se assim quem nos cria

entre beijos e carícias,

que são na terra as primícias

do amor celeste ?!...

Olha para ti, Maria!

Que me mataste!

Que te perdeste!

.................................................................

Foge Antônio! Longe, ai! Longe!

....................................................................

Deixarem a morta em vida

neste sepulcro escondida!

Só!... Tão só co'a sua mágoa!

Sem pensares tu, Maria,

que tua mãe não podia,

neste país tão alpestre,

colher um fruto silvestre,

encher uma bilha de água!

..................................................................

Querer falar, e assustar-me

o acento da minha voz!

Querer andar, e arrastar-me

como a serpente na brenha!

Ver a dois passos o mato,

sem ter um feixe de lenha!...

Ai, Maria!

Ninguém no mundo presume

quanto, em noite úmida e fria,

me dói chegar-me à lareira,

sem ter quem me acenda o lume.

................................................................

Só tu, Deus, Senhor, que habitas

o teu céu azul sem termo,

lanças vistas de bondade

as solidões do meu ermo!

Só tu me guardas do vento,

me abrigas da tempestade,

e, por mão da caridade,

me dás conforto e sustento.”

Esta paciência, fácil em aceitar com tão fraco protesto e sem aflição o mal, como aceitaria a noite, ou a mudança das estações, é simplesmente admirável, mas não é natural nem comunicativa.

O autor vai por diante no desenvolvimento da sua tese:

— “Delfina, a ingrata Maria

não volta do errado trilho !”

— “Vós me fareis companhia :

sois meu pai, sede meu filho.”

— “Pede a Deus te encurte a vida,

vivida tão sem ventura!

já tens a palma florida;

mártir, pede a sepultura !”

— a Deus vê-me; em cada existência

a desgraça esmalta a prece:

paciência ! paciência

é o brasão de quem padece.”

Para provar que os pobres se devem auxiliar, e que o suicídio é um mau passo escreve:

“Oferecendo a Deus a sua mágoa

os dois vultos caminham para a Ucha,

Domingas abraçada co'a Sagucha

Vinha do rio co'uma bilha d'água!

ajuntando-se em místicos abraços,

evitando os barrancos e os abrolhos

prestando, a decepada, a luz dos olhos.

Domingas, a ceguinha, os pés e os braços!

Milagres divinais da paciência!

ó sublime potência dos afetos!

destes dois pobres entes incompletos

inteira-se, perfaz-se uma existência!

Fugi de mim, desígnios meus protervos!

suicídio, és do egoísmo, és da descrença!

Senhor, aqui me tens! Lavra a sentença

do miserável servo dos teus servos!”

São encantadores estes quadros sob o aspecto da arte e da poesia.

A filosofia, porém, aqui não prima por abundante e eficaz.

A sublimidade do poema patriarcal desenha-se entretanto a este respeito com o inimitável colorido da palheta hebraica.

Job, defendendo, por assim dizer, os seus direitos, debate-se contra os amigos na mais renhida discussão. A sua energia e coragem neste repto heróico assumem proporções tão avultadas que parece tocarem os limites da blasfêmia.

Esta lição é verdadeira, e quadra aos sofrimentos reais.

Quando a dor é intensa, não pôde ocultar-se no manto de uma humildade incompreensível, antes se revela nos gemidos, nas vociferações ou nas lágrimas.

A resignação de Job não é silenciosa nem discreta, e a razão é porque o seu padecimento, si não foi real, foi fundido nos moldes da verosimilhança.

“Porque não morri eu dentro do ventre de minha mãe? Porque não pereci tanto que saí dele? Porque fui recebido entre os joelhos? Porque me alimentaram com o leite dos peitos?”

“Uma só coisa é que digo: Deus aflige assim o inocente como o ímpio. Se ele fere, mate de uma vez. e não se ria das penas dos inocentes”.

“Porque me tiraste tu do ventre da minha mãe? Oxalá que eu tivesse perecido, para que nenhum olho me visse.” “Deus me fechou debaixo do poder do injusto, e me entregou nas mãos dos ímpios. Eu... aquele em outro tempo tão opulento, de repente fui reduzido a pó: tomou-me pelo pescoço, quebrantou-me, e pôs me por alvo dos seus tiros. Cercou-me com a suas lanças, atravessou-me os rins, não me perdoou, e derramou sobre a terra as minhas entranhas. Despedaçou-me com feridas sobre feridas, lançou-se a mim como um gigante. O meu rosto inchou á força de chorar, o as minhas pálpebras se escureceram. Padeci isto sem maldade das minhas mãos, quando eu oferecia a Deus puras rogativas. Terra, não cubras o meu sangue, nem os meus clamores achem lugar de se esconderem no teu seio.”

Eis a verdadeira linguagem do que sofre. Exemplo sublime aos olhos do sábio, e edificativo aos do ignorante. Advertências grandiosas em que o descrente aprende a recobrar a fé perdida, o crente a fortalecer cada vez mais a sua fé.

Varella não se propõe atingir, ao que parece, nenhum dos alvos que a piedade, filosofia ou a razão social indicam como bálsamo contra as crenças da humanidade;

O seu fim único é pintar um infortúnio, um desespero.

Como na epopeia de Job, os dias nefastos chegam aqui depois de dias de alma delicia.

Na Delfina do mal, na Alma do Lázaro e no Leproso depara-se desde as primeiras paginas a desgraça dos protagonistas. O espírito transporta-se a uma atmosfera pesada que não varia, que é sempre a mesma até o fim. A preocupação da enfermidade e do nojo que Ella inspira, preocupação que não deixa nunca os enfermos, traz o leitor suspenso nessa atmosfera inficionada.

Não se dá o mesmo no Diário de Lázaro, e posto que o tom elegíaco domine em toda esta produção, antes de chegar a catástrofe, o leitor atravessa um mundo perfumado e esplêndido. O autor soube aparelhar um contraste, criar uma transição, coligir e combinar circunstâncias que aumentam o relevo da angustia imprevista. Na reunião dos elementos do drama é que eu vejo o principal merecimento dessa produção. Imagine-se uma alma de vinte e dois anos, que se alimenta de fagueiras ilusões, e se embala em arroubos feiticeiros. Depois de uma jornada de dez anos essas ilusões realizam-se, esses arroubos traduzem-se no amor mais puro o mais feliz.

O peregrino que discorreu por estrangeiras terras volta á pátria, e abre-se-lhe aos olhos uma como fascinação oriental, um novo jardim das Hesperidas: a mão de Lucilia lhe é concedida. Tudo o que rodeia estes jovens esposos respira prazer e enlevo. Cada um deles tem na alma.

“.................................um mundo inteiro

De perfumeB, de cânticos, de flores”

Mas em pouco tempo, quando a taça da ventura ainda não estava esgotada, quando as paixões cresciam em intensidade, quando ia ainda em meio o festim menos como realidade que como sonho, imprevista e pavorosa tormenta troa na atmosfera, até ali iluminada e deliciosa, e um drama negro vem substituir-se ao idílio límpido. Separam-se violentamente as duas almas que o amor unia. Entre elas acende-se tormento mortal. Não tornarão mais os dias repletos de harmonias afinadas pela satisfação inefável que gera o amor novo e amplo;

passaram para sempre. Devia ser crua para dois corações entusiastas, no vigor da idade, no meio dia da ventura, a noite eterna que lhes veio na ultima nuvem da aurora, como na aza de dourada abelha vem envenenado pólen.

Varella alcançou a imensidade dessa aflição, mediu e esboçou todo o negrume dessa agonia indizível. Sob este aspecto o seu trabalho é muito mais meritório: perfeito que os dos predecessores. A resignação em casos tais é cristã, mas o desespero muito mais racional. Concentrar-se mais nas próprias angustias que na paciência; ter antes os olhos fixos na miséria corpórea que o espírito erguido a consolações que não prometem remédio ao mal senão além da campa — eis o ponto de vista onde se deve colocar o artista aspirante a retratar o sofrimento sem véus anódinos que tem cabida na pintura ideal, mas são impróprios dos quadros da vida.

A arte, a religião, certos interesses da humanidade virão tomar satisfação ao artista que molha o pincel em tintas tão carregadas, posto que não sejam falsas? Isto é outra questão. Não entrarei nela.

O que eu vejo no Diário de Lázaro é uma historia dos nossos dias, historia tão real que comove o leitor, ele suscita melancólicas meditações.

Cumpre, porém, notar que Varella não deu á sua concepção todo o desenvolvimento que ela comportava e requeria. A ação corre célere, e alguns traços ficam sem as cores e os contornos que deviam fazer deles imagens ou grupos de significação relevante.

Com quanto ali o poeta abuse dos adjetivos (é este um dos seus maiores defeitos), muitas e vastas ideias esparziu ele por essas páginas, onde brilha o seu gênio travado de tristeza com alguns longes de descrença. O seu talento descritivo não descora, a sua toada musical, si não se apurou mais, é tão cadenciosa neste como nos livros precedentes.

De todos os poemetos que compôs, o Diário de Lázaro é inegavelmente o de mais mérito, e seria uma das primeiras obras do poeta se ele o tivesse revisto.

Mas, ainda no estado em que o recolheu um talentoso amigo cultor das nossas letras, o Sr. Arthur Barreiros, a quem a Revista Brasileira deve o ensejo de tornar pública esta valiosa deixa de tão opulento engenho, ainda nesse estado, é o Diário de Lázaro uma distinta página dos anais poéticos do Brasil.

Recolhamos também, nós os que prezamos os clarões dos astros superiores, tão estimável irradiação mental.

É o último reflexo de um sol gentil que desapareceu no poente e não surgirá mais.