TEATRO ARCÁDIA DE NOVA IGUAÇU

Era o final dos anos setenta, e eu uma menina de seus dezessete anos, cheguei naquele teatro, porta de ferro de tamanho médio, com uma escada que levava para o grande salão, voltando para a entrada, tinha um senhor em uma cadeira e uma pequena mesa, era o porteiro, seu nome não lembro, mas era muito simpático, sorridente, e triste.

Lá em cima tinha um outro senhor branco, careca, falar engraçado, mãos a gesticular muito, seu nome Celso Mociaro, creio que era quem coordenava tudo por lá. Ele tinha uma sala pequena que ficava de frente para o palco, nesta sala tinha uma máquina de escrever, uma mesa dessas de professor, algumas cadeiras um armário, muito entusiasmo e amor no que fazia.

Eram os anos de chumbo, a ditadura comia solta. Eu nem desconfiava o que se passava entre aqueles heróis da resistência, era apenas uma jovem querendo ser atriz.

As cadeiras eram de madeiras, dessas dos antigos cinemas, que ao levantar se fecham, tinha umas duzentas mais ou menos, com três corredores para se chegar até elas. No meio havia uma pequena escada de cimento, com três degraus, a ribalta com suas lâmpadas, no alto tinham muitos refletores, com suas gelatinas coloridas. O chão do palco era de madeira, pois me deitei muito naquele solo sagrado pra mim, foi ali que senti o prazer de ser atriz, tinha o público de perto, tão perto que dava pra ouvir sua respiração.

caminhado mais um pouco tinham as rotundas, três de cada lado, o palco era todo preto, e andando um pouco mais chegaríamos no camarim, acho que só tinha um camarim, que era do lado direito do palco.

Neste local maravilhoso vivi momentos inesquecíveis, atuando em algumas peças, danças e muita música. Infelizmente a maioria dos nomes me esqueci, mas dos que me lembro aqui estão: Suely Fuentes, era o pseudônimo de Roberto de Brito, que atuava com a gente, dirigia, escrevia para os jornais locais, era muito amigo do Celso.

Tony Ribeiro, outro grande profissional, ele tocava violão, compunha as músicas das peças, dirigia, e ajudava na divulgação dos espetáculos, nós fazíamos de tudo naquele teatro, montávamos os cenário, construíamos os adereços, fazíamos a faxina e brilhávamos em cena, foi a minha melhor escola.

A noite quando o tearo fechava, íamos para o "teatro do banco" ou seja sentávamos no meio fio diante do banco, que ficava em frente a travessa Alberto Cocoza, e lá entrávamos madrugada a dentro cantando, rindo, ignorando o que se passava em termos de repressão, eu pelo menos, porque ouvia umas conversas sobre desaparecimentos, porradas em alguns poetas, mas nem de longe imaginava o tamanho da violência que se praticava com quem ousava pensar e externar seus pensamentos, tinha um poeta, acho que seu nome era Sapato ou algo assim, que era meio louco devido a essas porradas, ele aparecia e sumia.

Amália Nok, bailarina e professora de balé, tinha uma academia de dança chamada CENTERARTES, seus pais moravam em Copacabana, e as vezes eu ia com ela para Copa, me lembro de caminhar a noite nas areias da praia e a sua filha Suriel ia Correndo na frente virando cambalhotas, era uma linda menina loira, dos seus quatro anos mais ou menos. Com Amália aprendi os primeiro passos do sapateado e me apaixonei por essa dança, ela montou um lindo espetáculo de dança, com balé e eu fui uma das convidadas com a minha famosa Emília do Sítio, que na época fazia o maior sucesso na TV com a atriz Dirce Miliato.

Das peças que participei e me recordo de Homens Mitos, Vento Asfalto Poeira, Os amantes embaixo da Cama, essa última com Silva Rizzo, eu fazia a empregada boazuda que o filho do patrão queria comer e acabava embaixo da cama, ele era muito engraçado, andei vendo-o em alguns programas de humor na TV, mas nunca mais falei pessoalmente com ele. Quem está na TV até hoje é a Penha, uma atriz negra, que atuava com a gente, cheguei a passar um natal na sua casa com sua família, também nunca mais nos falamos pessoalmente. O tempo nos afastou de vez. Tem uns rostos que ficaram marcados em minha mente, mas seus nomes me fugiram.

A censura ia ver todos os nossos espetáculos, antes da estréia, eles chegavam com suas pastas e canetas e nós fazíamos a peça para eles, os atores faziam com má vontade, putos mesmo, eu não, fazia feliz da vida, me sentindo honrada, afinal era gente do governo a nos assistir! Coitada de mim! nem desconfiava o que representava a censura.

Eram assim nossos dias no Teatro Arcádia.

Lendo um livro sobre o Arcádia, fiquei sabendo do abandono das autoridades, da morte do ator Marcos Meireles, que se não me engano foi o ex marido de Amália Nok e pai de Suriel, ele morreu pedindo para que não deixassem o teatro na Baixada morrer. Infelizmente o teatro fechou as portas, e nunca mais se fez teatro como nós fazíamos, éramos uma família, e juntos fizemos muitas coisas bonitas, emocionantes, enchíamos aquelas cadeiras, só com as filipetas distribuídas nas ruas de Nova Iguaçu, algumas reportagens nos jornais locais, e os festivais eram um grande sucesso! Embora eu nunca tenha sabido se alguém ganhava alguma coisa, eu só queria participar, e as vezes até pintava um cachê.

As vezes me pego cantando: " Eu sou o final do tempo, o resto do nada, na luta fria eu não sinto nada, não sou um homem pois morto estou... e sol se reparte ao vento poeira asfalto e por um momento eu grito alto para as paredes do mundo ouvir, que dentro do peito existe um amor fadado, de um sentimento mal programado por um botão de computador... e por aí ia uma das músicas da peça Vento Asfalto Poeira.

Fazer teatro é usar como matéria prima a palavra, e com ela amassada, espremida, degustada, cuspida vomitada... vamos sentindo e passando o mais puro dos sentimentos, VAMOS VIVENDO.

Saudade é a palavra para terminar essa etapa da minha vida, foram dias lindos, com muita luz, muita música e a menina saiu de Nova Iguaçu e viajou muito com sua arte, mas as raízes ficaram lá no Teatro Arcádia e no palco do Martins pena.

Os anos passaram, hoje estamos no dia 15 de outubro de 2021. Esse texto criou pernas e caminhou muito, depois dele exposto aqui, reencontrei com todos os participantes do velho e amado TEATRO ARCÁDIA, hoje temos um grupo no whatsapp, e estamos gravando nosso depoimento sobre tudo que vivemos por lá, será mais uma forma de manter viva essa memória, de um feito incrível que na época nem nos dávamos conta. Reencontrei com Selso Mociaro, que infelizmente faleceu há pouco tempo, Celí Ramalho também faleceu por esses dias, mas cheguei a ver uma foto sua nos dias atuais.

Fui a uma reunião que fomos intitulados como dinossauros, foi muito lindo! Um encontro com o passado, muitos eu não conhecia, pois minha passagem por esse teatro foi curta, uns dois ou três anos, depois mudei da Baixada e não voltei mais,

mas rever velhos amigos, foi uma mistura de intimidade e uma estranheza com rostos envelhecidos, que já não conhecia, eu olhava pra cada um e via-os com o rosto do passado, isso é muito doido!!! Muitos dos colegas já se foram, mas agora temos um novo teatro, Silvio Monteiro, ou algo parecido, perguntei quem era esse cara? Me responderam que era o Silvio Sapato, na hora me lembrei daquele poeta, que fora preso várias vezes pela ditadura e ficará meio louco devido as torturas vividas, ele aparecia no teatro do banco e cantava, Dalva poesias e sumia de novo, até que um dia parece que sumiu de vez, não sei o quê aconteceu com ele. Mas fico feliz que hoje tenha um lindo lugar com o seu nome! Amanhã será minha vez de gravar um depoimento da minha estada por lá, ainda não sei direito o quê vou dizer, mas estou feliz em participar, num país onde a memória é uma vaga lembrança, faço questão de deixar esse meu rastro na arte para que no futuro outros artistas sigam esse caminho e cumpram sua missão de alegrar e fazer raciocinar as mentes massacradas por uma rotina escravagista, o povo da Baixada Fluminense, é criado para estudar o mínimo, produzir o máximo, viver em um lugar que não tem diversão, pra eles resta apenas as igrejas evangélicas onde eles cantam, atuam, mas de forma controlada, apenas para louvar, questionar e pensar livremente, nem pensar! Resta o álcool, as reuniões familiares em algumas datas e mais nada. Então um teatro como o Arcádia era um OASES no meio de um deserto cultural, daí a nossa grande importância. Daí a destruição desse templo sagrado da Cultura popular, mas nós seguimos adiante e fazendo cumprir nosso destino. Agora estamos partindo, saindo de cena do teatro da vida, mais uma vez sendo resistentes e fazendo o registro dessa caminhada.

Glória Cris
Enviado por Glória Cris em 17/11/2013
Reeditado em 15/10/2021
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