O teu primeiro Natal fora de casa foi fácil? Não me digas!

Tinhas 16 anos quando passaste o teu primeiro Natal fora de casa. Longe. Bem longe da ilha. Em Coimbra. Em 1865.

A saudade foi tanta e tão dura de suportar como foi duro de suportar o duro frio daí? Doeu-te até o corpo das saudades? Dos teus pais, dos teus irmãos, dos amigos e da tua terra?

As mulheres e os homens da tua vida, repetiam-te: faz-te um homem! Aguentaste. O teu corpo era palco de uma guerra estranha: o corpo da criança cedia ao corpo do adulto ao ritmo frenético dos vagalhões das Poças, porém, a maturidade do adulto crescia ao ritmo langoroso das vaguinhas da lagoa do Fogo.

Seria a última vez que verias a casa onde te criaste. Vieste aqui em espírito, apesar do teu corpo nunca mais ter cá voltado.

José, porque foste ser doutor aos 15 anos? Não foste filho único, eras apenas o mais velho. Os teus pais quiseram que o filho mais velho fosse estudar para Coimbra? Por que não foram os teus dois irmãos abaixo de ti? Não quiseram? Não puderam?

Alguma vez os teus irmãos te disseram alguma coisa? Havias sido tu e não eles? E tu? Terás pensado que os sortudos eram eles e não tu? Porque tiveste que sair da terra enquanto eles não? Iria ao menos valer a pena?

Quando saíste da ilha, com quinze para dezasseis anos, o teu irmão Damião tinha doze e Manuel onze, Maria Filomena, oito e Maria da Glória cinco, seis anos. O teu afilhado e irmão mais novo Augusto, já há muito havia falecido. Deixaste também três dos teus quatro avós enterrados no cemitério de Nossa Senhora da Estrela.

Levavas daqui a medida com que medirias doravante o mundo. Eras português, ilhéu, de São Miguel, da Ribeira Grande, da Conceição, um Nunes da Ponte, católico, apostólico, romano.

A tua mente acumulara-se do que assimilara em festas, profanas e religiosas, nas escolas, na igreja, nas vindimas, na loja do teu pai, na leitura, de jornais ou livros, nas conversas com os mais velhos ou com os da tua idade, nas brincadeiras com os teus irmãos e amigos.

Até o sotaque daqui. Talvez te tenhas esforçado para o coimbrizar. Porém, dizia quem te conheceu, que se distinguia nele ainda algo residual do sotaque daqui.

Sentirias vontade de regressar à terra? Saudades? O poema mais antigo conhecido de ti data de 1869. Aliás, datados daquele ano, temos dois e não um: um, chama-se Saudades, o outro, Sofrimento. Tinhas 20 ou já vinte e um anos: já levavas então cinco natais fora de casa.

Mário Moura

A três amigos:

Edmundo Pacheco,

Daniel de Sá

Manuel Ferreira

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 26/12/2013
Código do texto: T4625838
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