foto DIO - Heverton Valnir
"Os meninos eram sempre coadjuvantes nos espetáculos dos doidos encenados na pacatez das cidades interioranas. Sem os meninos e as suas farras, os nossos doidos talvez não tivessem expressão alguma ao longo de suas vidas, todavia marcaram toda uma geração e ficaram guardados na memória das suas comunidades pelo gesto abnegado de algum daqueles  meninos que, depois de crescido, soube historia-los" Téofilo José Fernandes
Os meninos eram sempre coadjuvantes nos espetáculos encenados pelos doidos,  na pacatez da cidade. Preconceito é uma palavra que mal, aquela geração, sabesse defini-la, com o sentido de maldade. Nunca se ouviu dizer que um desses loucos tivesse recebido uma pedra, nem como revide das pedras ue atirou, ou que contra eles, tivessem cometido alguma maldade desumana.
Na carencia de divertimento e na disponibilidade do longo tempo sem ter o que fazer, os meninos que gozavam da liberdade de transitar as ruas, num momento provocavam a loucura dos loucos e noutra, era um defensor cuidados de suas necessidade, Descrever a vida e os modos desses loucos, foi para mim, uma retribução ao que eles representaram para nós, que ao nosso modo, soubemos o conviver e respeitar cada louco de Correntina.  

RAIMUNDA RAPOSA
a mais querida de nossos psicodélicos.
 
Raimunda era a dona de tudo! Destemida, não conhecia o medo! Era a dona das fazendas, das plantações, dos gados, dos cavalos. Era a patroa dos vaqueiros João de Adão, Tião Preto, Pedrito de Pedro Guarda... Raimunda era temida pelos racionais e irracionais da terra! Costumava passar temporadas na cidade e por vezes sumia mata adentro, quando a seca castigava o sertão. Muitos vaqueiros costumavam relatar que a encontrara cantando benditos, pedindo chuva aos céus, no meio das caatingas e cerrados. Era uma penitente solitária em seus rituais de sacrifício, em favor da vida, das matas e dos animais indefesos, diante da seca, da fome e do fogo, nas queimadas descontroladas que destruíam tudo que se via pela frente. Raimunda era uma fervorosa e solitária criatura, de todas as horas; não importava se fosse noite ou dia, o lugar que fosse, seu canto era ouvido nos cemitérios da cidade, mas matas, ela cantava benditos, pedindo chuva, fartura para o plantador, pedia perdão para o pecador e misericórdia para as almas desgarradas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
CANTO 1

“Abre a porta povo que lá évem Jesus
Ele évem cansado com o peso da cruz
De porta em portas, de rua em ruas
Deus leva minha alma sem culpa nenhuma.
Abre a porta povo que lá évem Jesus
Ele évem cansado com o peso da cruz” ... bis

(FOTO: Flamarion Costa)

CANTO 2

“Viva São Francisco com toda grandeza
retrato de Cristo é o pai da pobreza (Bis
Senhora Santana livrai-nos da peste
da fome e da guerra dai chuva na terra.
 
O Professor Altair Barbosa, correntinense que se tornou a maior autoridade em conhecimento do Cerrado, realizou, em Goiânia, um sonho que é motivo de orgulho para todo correntinense naquela capital; em convênio com a Universidade Federal de Goiás, ele construiu o Memorial do Cerrado. Catalogou em um complexo cultural, toda a vida do cerrado, erguendo uma vila cinematográfica que resgata a história desta rica região brasileira e em meio a tudo isso, parte da história correntinense, o que tem se tornado ponto turístico obrigatório, para todos os amantes da cultura e preservação ambiental, que visitam a capital de Goiás. Em CD´s e se valendo do talento de excepcionais músicos, reproduziu as letras das canções cantadas pelos caboclos e rezadeiras do cerrado, trazidas por diversas ocasiões, para apresentações reais desta cultura, no Memorial, fazendo tornar-se conhecido o grupo Sons do Cerrado que em suas canções imortaliza o cerrado do oeste baiano e do centro oeste brasileiro. Vale a pena conferir.!
 
Eu me acho incapaz de descrever a seca que assolava o sertão correntinense, em sua parte formada de caatinga e o cerrado era o inesgotável celeiro onde refugiava as manadas de gado; onde os caboclo sobrevivia, colhendo frutas típicas, caça, água em fartura, entanto seria fonte inesgotável, se o homem respeitasse os limites da natureza e da preservação do bioma. Eu conheci o confronto desigual do habitante do cerrado e o habitante da caatinga e por diversas vezes fui parte do cortejo, de meninos que em tudo imitava a “gente grande”; cruzando as ruas da cidade, de uma extremidade a outra, molhando os cruzeiros que ficavam nas entradas e saídas do perímetro urbano da cidade, onde geralmente um mata-burros, delimitava o início ou fim deste perímetro para iniciar a área rural.
 
Por vezes Raimunda era presença marcante, numa rodada de rapazes a beira de uma fogueira, nos fins de bailes, promovidos no Cine Teatro de Correntina, e ali, no meio da rua, ficavam jogando conversa fora, numa consciência que podia-se garantir, que aquela não era a mesma louca do dia-a-dia. Prosadeira, contadora de causos, se tornava o centro das atenções. Por vezes serena e simples com seu inseparável rosário de contas graúdas preso ao pescoço; turbante a cobrir seus cabelos... era o perfil de Dona Raimunda.
 
Em horas como esta, de tanta serenidade e paz, Dona Raimunda costumava ir ao encontro de sua filha; uma jovem deficiente física e mental, que morava com alguns parentes, lá pras bandas da na rua de Pedro Guarda, próximo a casa de Luizinho, tocador de bumba, na filarmônica da cidade.

Uma vez presenciei um encontro, passeio, desses, entre Dona Raimunda e UmaUma, obviamente deviam estar sendo acompanhadas, a distância, por alguém, que por certo haveriam de intervir, caso houvesse excessos ou riscos, para a jovem deficiente, mental e motora. Não sei até hoje qual o nome da filha de Dona Raimunda Raposa, sei que a molecada acabou por lhe dar um codinome e foi o que ficou para toda a cidade, UmaUma. Como a mesma não tinha, também domínio na fala, se expressava a tudo, com uma só palavra:

Uma... Uma... foi esse o nome que ela ficou.
 
Naquele dia eu estava ali, no Jardim da Praça da Matriz; era um fim de tarde, quando Raimunda e sua filha Umauma chegaram; Umauma apenas ria, ria de tudo e para tudo; elas adentraram os canteiros e colhiam flores, que por certo iriam enfeitar os alteres da igreja em frente. Umauma não se cabia de tanta felicidade; olhava para todos, acenava como se a dizer, aos que presenciavam tal momento: - Olha eu aqui, com minha mãezinha!

A grandeza naquele momento, eu nunca mais me esqueci e mal sabia eu, que anos mais tarde eu teria alguém com excepcionalidade em minha vida, que eu amaria acima de todos os sonhos, acima de todos os desejos, acima de mim mesmo! Emotivo que sou, quis naquele instante questionar a Deus, mas eu mal sabia de Deus sua essência; era alguém que o tinha como um Senhor duro e carrrasco aos que infligiam seus conceitos de liberdade; como ousar questionar a razão de um momento tão dolorido e ao mesmo tempo amoroso! Limitei-me a guardar aquele instante, que flui neste momento em que derramo minhas memórias.
 
Umauma nunca saía de casa; tinha o hábito de sentar-se a porta da rua para vê o movimento de idas e vindas das pessoas; para quem ela incansavelmente sorria; por vezes recebia um olhar ou um aceno como retribuição e era tudo que Umauma queria de quem passava pela rua: Atenção! Uma manifestação de carinho; ela queria ser percebida e nunca ignorada.

Quando era domingo de futebol, os meninos ao passarem pela porta da casa de Umauma, perguntavam-lhe qual seria o resultado do jogo e a sua resposta era a repetição de sempre:
- Umauma
- Empate ! o jogo vai ser empate!!!
(sai correndo o menino a dizer que Umauma previu o placar do jogo!)
 
Não sei se boba era Umauma, de tãn, tãn! de tanta inocente, ou os meninos que perdiam horas a lhe indagar a mesma coisa, para ouvir a mesma resposta de sempre e sempre! – Umauma! Ela babava em risadas ao vê o fedelho disparar em uma correria gritando uma a uma o jogo vai ser empate, uma a um... Afinal fora vista e por alguns instantes houvera comunicação entre seu mundo e o mundo dos bobos meninos, que lhe alegrava os dias. Ficava nisso !

Sua mãe, Raimunda Raposa, quando aparecia pela cidade mexia com tudo e com todos. Não era os meninos que lhe importunavam, mas ela que os faziam tomar seu lugar. Um olhar que não gostasse, fazia Raimunda partir fervendo para o fedelho, que disparava numa corrida desesperada, temendo ser pego pela velha raposa. Alguns eram surpreendidos por ela e quando menos se esperava, o fedelho tomavam aquele bofetão ensurdecedor no pé-do-ouvido, seguido de uma áspera ordem:

- Tá fazendo o que na rua? pra casa moleque! Que virar vababundo ? Vai estudar!
 
Inútil era tentar argumentar ou pensar em revide. Alguns tentavam vingar-se do susto e do tapa; de longe xingavam Raimunda de qualquer coisa, mas ela nunca se incomodava com nomes ou apelidos, pois nada lhe pegava ou servia de carapuça. Raimunda não esboçava reação para sair atrás do moleque; mas certamente outro, que passasse por perto, iria ser o alvo da resposta.

Raimunda Raposa ficava toda eufórica e agitada, quando uma boiada atravessava a cidade, aquilo lhe ascendia o espírito de fazendeira, agropecuarista. Saía correndo como um cão que tange o gado. Atrapalhava os planos do vaqueiro condutor da manada, noutras, observava de longe, a dialogar com os vaqueiros:

- Cuida do meu gado direito vaqueiro, senão fico muito macho e lhe castro feito boi manso, se me perder uma cabeça dessa!!

Pela direção que tomava a boiada ela ordenava aos vaqueiros em qual fazenda deveriam ser confinados; outras vezes ordenava que o gado fosse levado para o campo livre do cerrado; quando ali era território livre, sem erosão, sem desmatamento, sem plantação de soja e grãos. O gado pastava sem cerca de arame, sem cancela ou mata-burro, enquanto o pasto da fazenda aguardava a estação das chuvas.

Raposa dialogava com quem estivesse próximo, se queixando da esperteza dos fazendeiros.

- Aquele ladrão de gado! Desgraçado! Roubou todo meu gado! ele há de morrer infeliz, vai ficar tudo aí prá causar briga de herança !

Raimunda era uma penitente, no cerrado seus benditos eram preces constantes ao céus, pedindo chuva e a misericórdia Divina para as almas que vagavam, perdidas do caminho do céu.

CANTO 3

“Ô minha mãe santíssima
Ô minha mãe santíssima do altar de Deus
Dê uma gota d´água pelo amor de Deus
Vós que estáis no céu,
Vós que estais no céu cheio de alegria
Deus que é por nós Senhor de cada dia.
Dê uma gota d´água pelo amor de Deus .

De outra feita, andou por toda cidade exibindo a caveira de um cadáver, retirada de algum túmulo do cemitério velho. Um de nossos ancestrais que ela falava mal pela rua, como um de seus desafetos. Desfilou pelo Mercado Municipal com a tal caveira, agitada e xingona... com a consciência de dizer de quem era o finado.
 
Foi um custo convencê-la devolver a tal caveira e com paciência a policia conseguiu recuperar a cabeça do finado e devolve-la à cova; com os protestos da família, indignada com Raimunda Raposa; freqüentadora assídua do cemitério local, que passou a ter seu portão fechado por corrente e cadeado, mesmo sabendo que na maioria das vezes ela era mais uma zeladora de um pessoas com espírito de vandalismo, tal era o seu cuidado e respeito com os mortos, que ela limpava os túmulos a mão ou inchada e em épocas de enterros ela dizia para quem perguntasse, quel era quem, naquele museu de cadáveres. Na primavera, quando as flores brotavam nos túmulos, Raimunda as colhia e levava para Igreja Matriz, para enfeitar o altar de Nossos Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores, seus altares prediletos; o que em nada agradava a Joana do Padre, que não gostava que as flores do cemitério viessem parar nos pés de imagens santas da igreja; porém nunca bateram de frente, haviam respeito mutuo entre elas. Somente depois que Raimunda deixava a igreja é que Joana refazia, a seu estilo, a arrumação, jogando fora as flores trazidas por Raimunda Raposa.

CANTO 4

“Oh meu Sinhor São José, aqui estou em vossos pé
Oh meu Sinhor São José
Pedindo água com bondança, meu Jesus de Nazaré.
Quem tiver sua divosão, contritai no coração
É de ver qualquer instante,a chuva de Deus cai no chão.
Quem tiver sua divosão , se apegai com José
Que ele é um santo milagroso pela vossa santa fé.
Oh meu Sinhor São José, com a cruz com vos tem nas mão
Nem de fome nem de sede, não mata seus filho não
Vos ouve esse bendito, meu Senhor que estai na cruz
Que nos dê um bom inverno para sempre amem Jesus.”
 
Raimunda conhecia todo o repertório das rezadeiras de chuva; visto que ela era uma das rezadeiras, aceita em qualquer grupo que se formasse; Raimunda era uma “Encomendadeira de Almas” que cantava com sua própria alma. Parecia saber da morte, como sabia da vida.

Em suas andanças pelas caatingas e cerrados; lhe doía a agonia das plantas, dos animais e do homem, sofrendo com a seca. Em suas penitentes ladainhas, pedia chuva do céu sobre a terra.
Um dia Raimunda partiu da cidade, como se fosse para mais uma de suas andanças pelas matas e nunca mais voltou! Tempos depois corre um boato de que ela havia morrido, não se sabe se morta por picada de cobra? atacada por onça ou o quê? Ela já havia nos descrito alguns encontros com a temida felina, e pelo visto ambas se respeitaram. Conta-se, na cidade que seu corpo fora achado no mato... vai saber como morreu Raimunda Raposa.
 
O cerrado nunca mais ouviu sua voz de penitente, pelas caatingas e campos; com ela morreu os cantos das almas, das "rezadeira de chuva". Morreu a alegria incomparável, que era a alegria do canto de Raimunda. Assim passou Raposa pelas gerações de 70 e 80, com sua alegre loucura que contagiava a cidade e nos tirava da monotonia dos dias infindáveis.


JÚLIO DOIDO
 
Era um tarado fanfarrão, um safado que assobiava as todo tipo de mulheres que passava por ele, agachado de cócoras na porta de alguma venda, jogando conversa fora. Júlio passava horas atoa, numa esquina, esquecido do tempo e dificilmente não murmurava entre o lábios, adjetivos à mulher que por ali passava.

- Tabacuca!!!,Xico de vaca ! gostosa!

Júlio era depravado, obsceno em cada ato, em cada gesto; mas não era afoito a ponto de  atacar uma mulher; louco sim, para        ( FOTO: Heverton Valnir )    dizer suas lorotas obcenas, que eram ignoradas por tê-lo como um louco. Talvez certo disso, mais ele se sentia a vontade para fazê-lo, por isso incorrigível. Por vezes passa dos limites quando se masturbava pelos cantos e muros, sempre que lhe davam trela. “Frisurado” por mulher e quem não é, não sabe o que está perdendo! Com uma das mãos Júlio segurava o eterno saco que carregava escorado ao ombro e a outra ficava acossar os escrotos por sobre a calça.
 
- Ai ai Jesus que belezura! Essa franguinha trepando em meu poleiro!... Vém cá belezura! Olha o Julinho chamando! Que peitinhos ela tem! cê viu? Viu?

...E ali mesmo, tirava o membro avantajado já de dentro do saco, onde um buraco premeditava a cena... não se sabia se ele mexia no saco, saco, ou no saco escrotos a engatilhar sua bengala! O ato punhetório não ia muito longe, as vezes mal começava e um honrado senhor de longe gritava: - Olha a safadeza aí Julio! Vou chamar a polícia! Para os meninos era algazarra, gritavam incentivando Julio, fosse em momentos obscenos, ou por vezes, dançando abraçado com o saco, uma inaudível gafieira ou forró, entoados com a boca em forma de tro ló ló, mas pela animação e alarido se sabia de longe que tipo de show estava ocorrendo naquele espaço; se era uma dança artística ou um ato punhotório.
 
Júlio aparecera em Correntina, vindo de Santa Maria da Vitória, no fim da década de 60. Diziam ter ele, lá, atacado uma mulher e por isso fora detido pela polícia; que incapacitada de mantê-lo na prisão, possivelmente fora solto na saída para Correntina, recebido alguns “catiripapos” e uma expressa ordem de se mandar, sem olhar prá trás.

Em Correntina ele ficou por uns 10 anos, ou mais, não sei precisar; era tão bom aquele tempo, que nem parecia passa, talvez por isso até hoje mora dentro de todos, que aquele tempo bom, viveu em alguma cidade do interior deste imenso Brasil. Em Correntina nada se registrou de grave, apesar do seu comportamento libidinoso; senão piadinhas e algumas tentativas frustradas de “punhetar-se” no meio da rua.

- Ó chegado! Empresta milim pru Júlio lhe pago depois!
 
Ele mostrava seus membro para os meninos e moleque que era, dizia pra gente: - puxa assim e bata muita punheta que ele cresce! Todo homem quer ter um membram e quando o tem, se mostra nos banheiros públicos sem nenhum pudor, já os que não se sentem privilegiados, se encolhe pra dentro dos “mijatórios”, por lá mijam e sacodem, se ajeitando para não chamar atenção...
 
Julio era integro e pontual com seus credores; vivia pedindo milim para um e para outro. O milim de um ele pagava o outro e ao outro ele deixava para pagar no dia seguinte. Sempre acabava o dia com dois conto no bolso, que acaba gastando em alguma necessidade que não lhe fosse ofertada pela população. Não lhe faltava nada, da carge a pinga, tinha sempre quem lhe desse a esmola e pinga nunca foi problema para quem bebe; em todo lugar há sempre alguém que paga uma, para um que não tem com que pagar, mas confessa a sede de um gole. No dia seguinte Júlio pedia a outro o mesmo valor, milim e ao ser atendido, ia imediatamente pagar o credor do dia anterior e na maioria das vezes o credor se recusava receber e lhe dizia: - Precisa pagar não Júlio! Se precisar de novo e eu tiver, conte comigo! Assim, tinha sempre no bolso, milim para pagar ou dois contos livre no bolso. Júlia era louco, disso não se tinha dúvidas, mas sabia que ninguém nega crédito a um bom pagador, por isso, era difícil alguém negar a milim pra Júlio, pois sua cota de pedir era rigorosamente obedecida, dois contos por dia. Milim de um, para pagar o outro e no dia seguinte tudo de novo. Diziam até que Julia tinha uma poupança que ele enterrava em algum canto da casa ou do quintal. Julio distinguia empréstimo de esmola. Quando pedia esmola era mesmo esmola, ajuda com comida, roupa, calçados, mas se pedia um empréstimo ele se apresentava “depois” para o pagamento.
 
O velho lobo mau, Júlio não comia ninguém, senão as velhas jumentas, que pastavam pela estrada da chácara do Major Felix. Elas sim, eram suas amantes ardorosas, que viviam pelos arredores da cidade ou pela beira do rio; o motel animal ! responsável pela iniciação de muitos rapazes e meninos feito eu. Sim! Porque não! Garanto que tinha-se mais emoção que um encontro com as mulheres cachorras, melancias, melão que infestou as novas gerações.

Júlio era um verdadeiro João-de-Barro, vivia construindo casas pela periferia da cidade. Tinha tudo que precisava estava ao alcance da mão. Madeira farta na mata mais próxima, palhas de buriti para cobertura, barro e água para fazer os adobes e em poucos dias, estava lá a casa de dois ou três cômodos. Não sei como suas casas acabavam sendo habitadas por outras famílias carentes... Júlio as vendia ? cedia voluntariamente ? Sei que vivia construindo casas e se mudando.
Por vezes se fingia de bicha e “desmoecava” a valer, conversava com dengo e com as mãos inquietas, mas era puro deboche! Gostava de cantar uma canção meio maluca, como ele, cujo refrão dizia:

“Oi Badú quase morro de fome
dinheiro de ome casadoque tem vergonha não come.
Vou casar com um tropeiro que é ome que não passa fome
ele trabaia montado, ganha dinheiro e nós come”

Cantava com alegria e mímica, com trejeitos afeminados e voz de “viado” debochado.
 
Júlio morreu em Santa Maria da Vitória, não sabemos precisar o ano, possivelmente nos fim da década de 80. Revelou-me o Capitão Getúlio Reis, nos relatando que fora assassinado a pauladas, por um grupo de vândalos, supostamente embriagados; enquanto dormia numa banca externa do velho mercado municipal, na Praça dos Afonsos. Estranhei o fato de ele estar dormindo numa banca do mercado; Júlio sempre construíra as casas onde morara. Nunca fora um morador de rua; a explicação é de que, também estivesse bêbado e fora vitima da fama de tarado. O tarado que nunca atacou nenhuma mulher ou homem, menino ou menina.

BERNARDINA DO BARROCÃO
 
Você já viu uma cara de vaca de cara tapada, doida, correndo a ermo pela rua da cidade ? Certamente nos dias de hoje, não! Mas naqueles nossos dias, isso era comum e até empolgante, pela falta de acontecimento, numa cidade parada... pacata... embora com a cara tapada, o pobre animal na maioria das vezes se desgarrava do lado e por vezes caia da ponte do rio... batia de cara nas portas das casas... e era um tremenda luta atravessar a cidade, rumo ao matadouro, onde findava sua agonia. Por vezes lhe tiravam a tapa da cara e dois laços se pendiam das fortes mãos dos vaqueiros e então se podia vê os olhos grandes, enormes! arregalados, penetrantes, reparando em cada movimento, com uma expressão, como se tivesse medo ou se pedisse explicação para tudo aquilo... Pois é, era assim que eu, menino, via a expressão Bernardina doida traduzia na face, quando descia do Barrocão para a cidade!. Eu tinha medo dela, dos seus olhos penetrantes... Ela atraía atenção da meninada, com seu jeito assustado, que mais parecia a tal vaca!
Ela tinha a mesma expressão assustada e arredia, semelhante as vacas assustadas, atravessando a cidade. Alta, 1.90m, talvez, e bem magra, Bernardina andava pela cidade na velocidade do vento.

Passadas rápidas, olhar desconfiado e penetrante, sempre beirando as calçadas ou pelo canto delas, a enroscas nas paredes das casas.

Tinha na mente o trajeto de ida e volta; só parava no caminho se estivesse acompanhada, não se dava a prosas. Sentia-se incomodada com o movimento das pessoas, aglomeração de gente lhe deixava agitada, temerosa. Estava acostumada com o mato, onde ela sentia-se a vontade. Morava no Barrocão, outro povoado engolido pela cidade; ali ela se dava a lida rural que lhe fazia vencer os dias, sem tédio, sem “indaga”. Mas não era essa a Bernardina que todos viam no grupo de "reizado" do Barrocão. Ali ela era de igual para igual, cantava, bebia, dançava e se dava a folia de reis, como todos do lugar. Bernardina era comum para o seu povo, com quem se dava e lidava sem nenhum constrangimento, tinha lá sua fraqueza de mente, mas não era uma amente para eles, talvez para nós, por não conhecer melhor suas faculdades mentais.

LIOCÁDIA
 
Outra louca rural do município. Aparecia a cidade nos fins de semana, para a feira de todos os sábados, ou em ocasiões das festas religiosas e políticas. Nesses eventos aparecia de visual novo; vestida em chita bem colorida, com uma forte maquilagem e um extravagante batom vermelho. Quando estava sóbria, isto é, mais amena das idéias; costumava forrar uma esteira num canto da feira, onde vendia frutas típicas do cerrado: Cascudo (araticum) pequi, araçá caju nativo... Alegre, cantadora de modinhas e cantigas de roda, andava pelas estradas cantando como um passarinho e com a alegria que chegava; Lió partia de volta pru roçado.
 
Os loucos transitórios, aqueles que não residiam na cidade, geralmente não eram incomodados pelos meninos, talvez por não conhecerem suas reações e seus hábitos.

JOANA DOIDA OU JOANA DO PADRE:
 
Joana foi a expressão viva das cores da alegria. Com certeza foi a mais festejada religiosa entre os loucas e loucos de Correntina. Para Joana era Deus no Céu e Padre André ao lado dEle! Reverenciava a tudo que fosse religioso, mas que fosse Católico Apostólico Romano. Tinha verdadeira adoração pelas freiras e certamente era este o seu grande sonho: ter sido uma freira; noiva de Jesus! Como ela mesma, por vezes dizia ser. Não sendo possível esse sonho, ela serviu ao apostolado do Coração de Jesus e ao apostolado das filhas de Maria. Nos festejos religiosos ela se trajava de forma impecável, toda de banco, do véu ao sapado; no pescoço os medalhões dos apostolado, nas mãos, flores, o inseparável terço e o boletim dominical do dia. Era uma voluntária extremamente dedicada, a tudo que se referisse a igreja Católica Apostólica Romana.
 
Tinha uma admiração extrema pelo Educandário São José, à Coordenadora dos internos professora Júlia da Silva Guerra e a Diretora educacional, Irmã Zélia Brandão, mas quanto ao Padre André era algo exacerbado! No educandário Joana prestava serviços diversos, além de cuidar do cultivo de hortaliças; Ela jamais se recusava as tarefas que lhe eram incumbidas; fosse pegar no cabo da inchada, ou atiçar o fogão de lenha, arear panelas, descascar raízes. Era uma fiel “cumpridora” da fé e da honra sua, e das meninas internas do Educandário. Gostava muito de se divertir entre as internas do educandário, em cantigas de rodas a falar dos seus sonhos. Nunca desistira de sonhar com um certo príncipe encantado, que pra ela nunca deixou de ser sapo. Não matava um sapo por nada e na brincadeira dizia:

- Vai lá que este não seja o príncipe de minha vida... mas beijar um sapo eu não beijo não !
 
Cantadeira de benditos e cantigas de roda, perdia horas e horas em noite de lua, brincando com as internas do Educandário ou mesmo, por vezes, com as moças da cidade, na praça da matriz, contando causos ou cantando cantigas de roda. Joana se destacava onde quer que estivesse e nos benditos fazia a 2ª. voz numa impecável afinação, saia de uma voz para outra, tão logo percebesse a necessidade de reforçá-la.

CANTO 6

Estava Maria na beira do rio
lavano os paninhos de seu filho
Maria lavava, José estendia

Menino chorava do frio que sentia.
Calai meu menino calai meu amor
Que a faca que corta dá golpe seu dor
Olhei lá para céu enxerguei uma nuvi

Trabeceiro e cama do meu bom Jesus.
Deitei em minha cama, pus a imaginar
O que eu fazia pra Deus me salvar

Ofereço esse bendito pru Senhor que estai na cruz
No seu bom e inverno
prá sempre amem Jesus.”
 
Joana era a sabiá do sertão, que mudou-se para a cidade, cantava de manhã, cantava a tarde, canta a noite, não tinha hora definida pra cantar, desde que seu coração estivesse alegre; cantava de tudo, músicas sacras, cantigas de rodas, reisado e quanto mais agitada, mais alegria semeava em volta de sí.
 
Em momentos assim, Joana era atração das jovens moças, que freqüentavam o movimentado jardim da praça da matriz. Riam a valer, pulavam corda, brincava de roda, cantavam modinhas de amor e discutiam simpatias pra pegar rapaz, ou seja, marido! Era uma criança feliz, uma menina-moça, passada da idade, mas na mente uma eterna adolescente que sonhava com o casamento que nunca aconteceu.

Quando se calava e tomava sua face um ar de preocupada, que a fazia correr de um lado para outro; Joana havia perdido o pouco controle que tinha de si mesma; queria fazer tudo ao mesmo tempo, atender as tarefas do Educandário, a faxina da igreja, limpar os canteiros de hortaliças... Ela se dizia sem tempo pra nada ou ninguém.
 
Corria de um lado para outro, entre o educandário, casa paroquial e a igreja, como se estivesse tomando providências urgentes, ou mesmo correndo para socorrer alguém; que era ela mesma. Este era o sintoma que preocupava a todos, que gostavam dela. Nesses períodos ela mal dormia, passava a noite no relento, cantando, tendo alucinações acordadas, dizia estar vendo o céu aberto e Nossa Senhora acenando para ela... Beata em todos os sentidos, pura em tudo que fazia ou pensasse; mas não fora o apego religioso a razão de sua insanidade, certamente fora na religião onde Joana do Padre encontrara a fuga da vida irreal, dos sonhos irreais, que lhe promovia uma dor real, incompreendida e injustificada. Nos momentos de crise era inútil tentar conte-la para qualquer conversa, no muito, ela respondia na mesma toada da corrida:

- Agora estou sem tempo, Padre André está me esperando, é uma urgência!
Não sei como nem quando ela morrera, se é que ela já morrera! Mas é bem certo que já se fora desta vida, em meio a uma cantoria singular, vestida em trajes oficiais da Congregação do Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo, em cujo lado, descansa em paz.

DIOCLECIANO – DIÓ DE DONA INÁCIA

Mais conhecido por DIÓ. Filho da parteira Dona Inácia, a mulher que mais assistiu partos na cidade entre as décadas de 40 a 70.  Eu  fui  um deles!. Dió foi acometido de paralisia infantil associada a outras (FOTO: Heverton Valnir) complicações mentais e motoras, quando criança; cujas seqüelas lhe afetaram a coordenação motora e a fala. Andava jogando o corpo de um lado para outro, as pernas não lhe permitia andar em perfeito equilíbrio. Era difícil entender sua linguagem comunicativa; só mesmo os parentes conseguiam entende-lo com perfeição. Dió utilizava muito das mãos em gestos tortos, desordenados, que se misturavam a uma linguagem indefinida para fazer-se entender. Misturava tudo que fosse possível, para tudo, dar em quase nada. Se não conseguia fazer-se entender ficava nervoso, mas sempre teve a compreensão e boa vontade da comunidade que com paciência lhe dava a merecida atenção.

Hoje limitado ao espaço de sua casa, ainda fala com muita dificuldade alguns monossílabos, engasgando na baba e tropeçando com as palavras, em decorrência da gagueira e da própria idade... Dio já passou dos sessenta e com certeza está na casa dos setenta anos de idade.

Sua irmã, de nome Maria, era um dos motivo de suas brigas insanas, com adultos e meninos, que na sua linguagem de acenos, lhe dissesse ser o dono de sua irmã Maria. O ciúme de Dió era doentio. Maria sua irmã não era para ser de ninguém, senão sua irmã, nem mesmo sei se ela chegou a se casar, embora seu ciúme não fosse ser o impedimento para tal. Bastava que lhe dissesse, por sinais ou palavras, das muitas que ele ainda entende, por ainda vive:

- Dió Maria é minha !
Estava então arrumado uma grande confusão... Dió partia para cima do provocador de chicote em punho, protestando com acenos e palavras inexprimíveis, para fazer com que o algoz dissimulasse de tal idéia.

A morte era outro grande temor de Dió, talvez por isso insista ainda na vida. Dizer que Ele iria morrer era uma ofensa sem perdão, pois ele guardava o insulto, para no momento certo, vingar-se com uma chibatada inesperada no vil “insultor”. Geralmente se dizia isso através de gestos, colocando as mãos postas sobre o peito, que poderia ser uma postura de reverência santa, mas também era como se arrumava um finado no caixão e aquele postura Dió não queria para ele, nem morto! Saía mais louco da vida, correndo com suas pernas tortas e bambas, com sua taca afiada de coro crú, para chibatar o fedelho que diante dele prostrou-se com tal perfil, dizendo que era Ele, que Ele iria morrer e ficar daquele jeito no caixão. Era assim que traduzia aquela postura.

Dió era limitado na corrida e por isso não se esquecia da ofensa e quando menos esperava ele dava o troco. Dissimulava, para enganar os garotos; dava uma volta no mercado ou quarteirão, como se fosse embora e tivesse esquecido o incidente e repentinamente era surpreendido com uma tremenda chicotada nas pernas. que o suspendia do chão. Ao sentir o ardor do chicote de couro cru, o moleque se voltava aos gritos e deparava com Dió, de chicote armado para a segunda chibatada, caso fosse preciso; o garoto resmungando de dor e Dio resmungando em sua linguagem única, a explicação da chibatada, compreendida, naquela altura, pelo maroto, mas nunca aceita! Encarar seria um erro, pois seria um risco certo de outra chibatada, agora de frente, pois Dio não tinha medo de menino nenhum.

Na verdade o chicote de Dió era um instrumento de trabalho e nem tanto para repressão, a ocasião é que lhe dava outra função. Ele passava o dia no mercado municipal, do setor de açougues, tangendo cachorros, vigiando os varais de carne postas ao sol, o que no final do dia lhe rendia uns trocados ou um bom punhado de carne, que ele levava para ajudar na despesa de sua casa. Era sua rotina diária, todos os dias, de manhã até a tardinha. A família não tinha necessidade daquela ajuda, mas era assim que ele se entretia e se achava útil. Era entendido e aceito pelos familiares e no mercado, tido como um trabalhador voluntário, temido pelos cães, que batiam em retirada com sua aproximação.

DONA MARIA OU CEBOLA ?

Não sei ao certo seu verdadeiro nome; mas era Dona Maria, quando queríamos sua atenção, no que éramos correspondido, logo, deveria mesmo ser esse o seu verdadeiro nome. Dona Maria. Entretanto, ao chamá-la de CEBOLA, a mulher perdia as estribeiras, tornava-se ríspida, agressiva e mau humorada; sua boca parecia uma metralhadora disparando um dicionário de mil palavrões, era uma sessão pornô de palavrões, independente do lugar que estivesse.

- “Cebola é o cabeludo no meio das pernas de sua mãe, seu Filho da Puta!”

Quando não ia direto ao assunto:

- “Cebola é a b... da égua sua mãe, Seo Xibungo!”

O apelido se dera pelo fato de Dona Maria, ter alguns fios de cabelo, do lado direito do queixo que mais parecia a barbinha de uma cebola! Por vezes ela chegava a porta de uma residência e se anunciava pedindo um “adjutório”, o que quer dizer ajuda, esmola, aceita o qualquer coisa, fosse comida ou roupa. O garoto ao anunciá-la a mãe, botava acendia a fogueira ao anunciá-la:

- Mãe ! Dona Cebola está aqui pedindo esmola !
- C e b o l a é sua mãe! seo xibungo !
- Oh! Desculpa !
- Desculpa nada seu sacana, você fez de propósito!
- Olha o respeito! Ou você não vai ganhar nada!
- “Infia” no cú, seo viado!, Filho de uma égua parida.
- Epa! Epa! Que ta acontecendo aí, que coisa horrível é essa !
- A senhora ouviu !ouviu!
- O que isso na minha porta Dona Maria ?
- O seu filho, a senhora viu do que ele me chamou ?
- E você me falta com o respeito desta maneira Dona Maria ?
- Eu não me controlo quando me xingam desse nome !!!.

Como sofria, na boca de Cebola, as intimidades de nossas mães! Como sofria Dona Maria com a pirraça dos endiabrados meninos ! Ela era duas pessoas em um só corpo; Dona Maria e Cebola; enquanto Maria, era a cara da piedade, por vezes sonsa, Cebola era a depravada, a mulher que batia todos os recordes de palavrões em no menor espaço de tempo possível. Para se redimir do grande escândalo, por vezes se desmanchava em pranto na porta da casa onde fora ofendida, como se a pedir perdão ou uma justa indenização pela ofensa sofrida e as vezes dava certo! Recebia o que tinha a receber, botava num embornal e partia para outra rua, onde por certo se repetia a mesma rotina.

Sem que ninguém soubesse, ela derepente desapareceu das ruas, talvez parentes ou uma alma piedosa a tenha recolhido num abrigo esquecido dos meninos, a espera da morte, quem enfim lhe daria o descanso merecido, que os meninos de Correntina nunca lhe dera e assim, Cebola ou Dona Maria desaparecera, deixando, em alguns, apenas lembranças de um tempo que passou!

TEREZA DOIDA
Tereza mais parece uma abandonada da vida, diante de sua lucidez e sua perfeita comunicação. Tem seus momentos de infesada, bebedice, namoro, que nos levaria a classifica-la como uma pedinte, se pedisse esmola ou comida, o que é muito rato, mas Tereza tem la seus momentos de desordem no timo e momentos de sanidade normal. É farrista de varar noites na folia; seria uma pé de valsa, não fosse a poluição musical do momento, aí ela embarca no ritmo da vez, que venha o que vier ela dança e se deixar (FOTO: Flamarion Costa)    se "estripitiza". Então se enquadra no contexto. Tereza logo se se apresenta, com seu sorriso maroto e toquezinho do ombro de um dos seus chegados, como se a direz: Estou no pedaço! Depois de uns goles, começa a pegação e uma falação próprio de quem já tomou todas na noite. Ela se incorpora ao cenário feito um camaleão; perambula pelas ruas noite adentro, a caça de movimento e aí torna-se sem hora de ir para casa.

Tereza faz a maior festa, quando recebe atenção dos que ela tem como velhos conhecidos, que morando fora da cidade, chegam para uma temporada de férias; como o jornalista Helverton Valnir, de quem ela pouco se afasta, quando o ilustre amigo em algum lugar da cidade.

Tereza passou a viver com um homem, um desses beberões andarilhos, que não se sabe de onde vem nem para onde vai. O homem acabou levando-a para Formosa – Go pouco tempo depois chega a notícia de que ela havia sido, por ele, assassinada a facadas; felizmente, tudo não passou de um susto e um mal entendido, e logo recebemos notícias de Tereza, pedindo a prefeitura uma passagem de volta e voltou com sua alegria de antes a perambular as ruas de Correntina, "vivinha da silva!". Tereza é uma mistura de louca e beberrona, tem lá suas deficiências, óbvio que não vive o que vive por assim querer viver, já é o bastante para considerá-la uma deficiente, desvalida da vida e quando está chapada é pegajosa, insistente, coisas da bebida.

“Ná” não tem muito apego as pessoas; na foto ele está com Baé, ou Silvio Roberto França. É portador da Síndrome da down, fechado em torno de si mesmo; é muito comunicativo com as pessoas que lhe conquista a cofiança. Ná, cujo nome verdadeiro não sei, é um verdadeiro apaixonado por música e carros; sempre se faz acompanhado de um microfone de madeira, quando não está com algo a servir-lhe de volante a dirigir um carro imaginário.

Esta presente, sempre, onde houver um ou dois reunidos e um som ativo. Canta e toca qualquer instrumento, o mais interessante deles, é a bateria; seus movimentos, sua expressão facial demonstram que o portador da síndrome de down, tem uma vida normal no cenário correntinense. Tornou-se uma figura inseparável no contexto desta bulhenta Correntina, como dizia o velho João Diamantino.

Por vezes chama atenção, quando pelas madrugadas, faça frio ou calor, deixa ser visto tomando banho no rio, todo peladão, peladão do outro lado do rio e logo depois, chega a rodada dos que de longe o observava; indiferente ao frio, alegre, banhado, feliz da vida. Pronto para começar o seu imperdível show, próximo aos aparelhos ou caixa de som, senão, ao lado do palco onde os músicos, ao vivo, animam a festa.

BAZÚ e BERTO (deficiente física)
Tinham faculdades mentais normais, porém os mais excêntricos deficientes físicos de nossa história. Um casal exótico, badalado pelos jovens da cidade. Nem mesmo as limitações das deficiências físicas impediram de fazer nascer um sentimento de amor entre Berto e Bazú. Ela de Correntina e Berto de Bom Jesus da Lapa. A conquista foi fruto das constantes viagens de Bazú, em romaria a (FOTO: Casa de Louro) terra do Bom Jesus e um dia retornou trazendo Berto na bagagem sofrida de seu afável coração.

Ela uma paraplégica, com atrofiamento nas pernas, pelo que fazia uso de duas muletas, quando preciso, se arrastava sentada, se valendo dos braços. Ele coxo, com atrofiamento em um lado do corpo. Andava, mesmo coxo e um completava o lado do outro.

O casal caiu na simpatia da rapaziada, que sempre lhes atendiam com cestas de alimentos e outros donativos, mas Bazú era implicante com a bola que os peladeiros jogavam em frente a sua casa. com a porta sempre aberta, por vezes a bola estourava dentro do pequeno barraco. A ordem era severa e Berto a cumpria a risca:. Cravava a faca no capotão e o devolvia aos peladeiros. Isto porém mudou, o local era privilegiado na beira do rio, para tomar banho e jogar bola e com os agrados que um e outro iam trazendo, Bazú foi mudando de atitude, tornando-se amiga dos peladeiros dos fins de tarde.

Com a morte de Berto a coisa mudou definitivamente, os peladeiros entre eles Mauro de Queno, conseguiram não se sabe onde, uma velha cadeira de rodas e passaram a levar Bazú para todo canto, futebol dos domingos, até mesmo atrás do trio elétrico, foi Bazú.

Zéqueira, o mendigo

Andava apoiado “ferrão” um bastão imenso, com uma ponta aguda de ferro. O ferrão de Zéqueira era muito parecido com o ferrão de “tocar parelhas no carro de boi”. Tinha aproximadamente 1,80 a 2,0m de cumprimento e era a terceira perna do velho mendigo. Ele usava da força dos braços, para aprumar o ferrão nas falhas do calçamento de pedra bruta, feito velho Major Felix em todo o centro da cidade, e depois projetava seu corpo adiante, com passos desconcertantes, inseguros... Zequeira em sua juventude fora um lavrador de pegar firme no batente, mas fora outra vítima dos males que ainda cedo, condenava homens e mulheres a invalidez, fosse por reumatismo, artroses, cataratas, derrames.

O peso dos anos enfraqueceram os braços do velhos mestiço, Zequeira, que passou-se a valer de um pequeno carro de carneiros, uma miniatura de carro de bois, mas puxados por carneiros adestrados. Poderia ter utilizado deste instrumento antes, bem antes, mas como controlar a dupla de carneiros se tinha atrofiamento nas mãos e pernas ! Com dificuldade ele andava firmando o ferrão de ponto a ponto, no calçamento de pedras, chão de areia ou barro e fez de tudo, para ter sua independência de ir e vir, até enfim valer-se do carrinho de carneiros, que por um tempo passou a ser controlado por meninos, ligados a ele; talvez, filhos ou netos.

JUSTINA CEGA (a mendiga)

Não era cega de nascença; certamente fora mais uma vítima da catarata, do diabetes, que silenciosamente matava; este mal era por muitos conhecido como o mal do “sangue doce”, que aos poucos ia matando os órgãos do corpo e os olhos era um dos primeiros a serem atingidos. Há quem diga que no passado era uma mulher trabalhadeira, arrojada; mulher para toda hora. Tinha um bando de filhos, o que era motivo de revolta, para alguns de seus ajudadores, saber da boa vida que dava a todos eles, que viviam como parasita, encostado na invalidez de dona Justina. Ela era aquela simpática ceguinha que todos queriam bem e não faziam arrodeios para ajudá-la. O marido era um “panacão”, que vivia nos botecos e nas mesas de bilhar e muitos, ignorando tudo isso, eram fraternos com a Dona Justina Cega.

CORNÉLIO PÉ DE FOICE (o doido da roça)
O baixinho não é mais aquela simpatia dada a todos, paciente e manso, como todo bom baiano. Seu anda peculiar e pés torto para dentro, davam um trejeito engraçado de andar, parecido com um grande pato. Era mesmo uma figura impoluta e invocada no se vestir: brilhantina nos cabelos e muito cheiro! Nosso último encontro (2008) não foi lá muito amistoso, pois a uma certa altura do papo, quando lhe apontei a câmara fotográfica, ele azoretou-se de tal forma, correu para fora da loja Ramos & Santana, onde estávamos e ameaçou pegar pedras para me atingir... tive que ( (FOTO: Heverton Valnir) sair do interior da loja, temendo que uma pedra quebrasse as vitrines e pedir insistentes desculpas, que não dizendo que não iria fotografá-lo, no que fui auxiliado por Núbia Ramos.

Hoje é um lavrador aposentado pelo Funrural, mas desde que se mudou para a cidade, nunca mais quis voltar pra roça, onde passava curtas temporadas e depois voltava para a cidade, para passear pelas ruas e lugares badalados, todo bem vestido e cheiroso, sendo bajulado pelas moças que o tratavam com muito dengo e isso o envaidecia cada vez mais, fazendo com que Cornélio andasse sempre bem vestido e cheiroso. Vivia sonhando com uma namorada e se encantando com uma e outra moça, mas não passava de encanto, simpatia a distância.

Sabe-se que é um aposentdo do Fundo Rural e nunca se registou que andasse esmolando pelas ruas, mesmo que uma vez ou outra, alguém lhe doasse um roupa, um prato de comida, mas isso era privilêgio de alguns mais intimo dele, pois Cornélio não aceitava de qual um a ajuda que fosse.

Recentemente Cornélio sofreu um mal estar e foi levado ao hospital público, algun disseram que foi mal do coração; o fato é que Cornélio, mesmo passando mal, resistia que lhe tirasse as roupas e com muita insistência das enfermeiras, auxiliadas por alguns homens, funcionários do hospital, conseguiram tirar as três camas de roupa que ele tinha sobre o corpo, até chegar a cueca, onde para surpresa de todos, Cornélio tinha guardado, acredite! R$ 13.000,00 (treze mil reais) sem falar numa poupança existente no banco. Até tu Cornelius, levando dinheiro na cueca... parece coisa dos Trapaceiros Petistas.

Soares e Porca Barrona (o ébrio e o doidos por carros)

Uma dupla apaixonada por caminhão e cachaça. Soares já acordava de manhã bêbado, seu bafo já tinha álcool suficiente para deixa-lo de porre constantemente. Quando estava além do limite, começava a soprar qui nem um caminhão e a engatar marcha, como se subindo uma ladeira ou descendo, com o pé no breque... com a boca ele imitava os velhos mercedes bens, gestos e sons, boca, mãos, pé... e de tal forma era o seu parceiros, Porca Barrona. Tinham os mesmos vícios, caminhão e cachaça; a mesma profissão, ajudante de chofer, com a missão de carregar e descarregar caminhões, que chegavam e saíam da cidade.

Toío, outro portador de síndrome de down limitado ao espaço de sua casa e vizinhança, na rua da chácara; manso e sereno, sorridente. Os parentes tinham o maior cuidado para com ele, talvez tenha sido o deficiente mas bem cuidado da cidade. O difícil era convencê-lo a ficar com uma camisa por mais de 10 minutos. Quando botava uma roupa nova, parecia um menino a exibir-se para todos que o via, mas era o tempo da novidade passar e lá estava Toío, apenas de calça presa acima do umbigo e pés no chão. Era a natureza, natural, de quem não tinha nenhum compromisso com o que havia por vir.

Nezo, o dançarino catador de lenha, que morava com a família de Jair. Tinha lá seus acessos de tarado, mas era de uma “disfarçatez”, como diziam na época, capaz de enganar qualquer um que lhe visse espiando as meninas de maiô, tomando banho no rio. Enquanto Ieíe abastecia a casa de Dona Safina de água, Nezo não deixava faltar lenha na casa de Seo Jair. Já que não havia botijões de gás e o fogo na cozinhar era mesmo da lenha. Todos os dias, que fosse preciso lá vinha ele com o fecho de gravetos. Aos sábados, nos limites da feira, eram vistos as fileiras de carro de bois, carregados de lenha, cortada sob medida, para atender a freguesia.

Alguns desses doidos realizaram pequenas tarefas, que os incluir no contexto social, outros simplesmente vagavam pelas ruas, na carência de tudo. Viviam ao Deus dará, como costumava dizer o velho João.
Neste lista de lembranças loucas e doidas, não podia faltar

TIA DO PEQUI ! (doida varrida)

Você se lembra dela? Talvez a preferida dos meninos, pois bastava gritar:
- Tia cadê o pequi?.
- Tá no rabo de sua mãe, fila-da-puta!
E se insistisse:
- Cadê o Pequi Tia ?
- Táqui o pequi, seu filho de uma égua parida!

Ela arribava a saia, geralmente sem calçola, mostrava suas intimidades para os endiabrados meninos, que iam ao delírio, se acabando em risadas. – Olha o pequi da Tia !!! e na época não era comum chamar as pessoas de tia, o que detesto, quando não se trata de meus diletos sobrinhos. No entanto, para TIA mostrar o pequi, ela tinha que estar num dia azuretado; azucrinada da vida, do contrário apenas xingava meia dúzia de palavrões e seguia adiante.

Nossos memoráveis loucos, que na casa de Louro são reverenciados com um imenso quatro fixo na parede, reproduzido no início deste capítulo. Louro orgulhosamente deu a este quadro o nome de “Os Amigos de Louro”. Foram esses amigos e alguns ainda são, personagens de uma vida real; peças indumentárias que tornavam o dia-a-dia uma seqüência de acontecimentos, sem os quais, não se completaria o dia, não se revestiria de cores das ruas em harmonias vivas e lembranças inesquecíveis, daquela que jamais será, a Correntina de tantas lembranças.

Até ébrios, ainda hoje têm, a tranqüilidade de beber, beber até cair onde alguém por certo o reconheça e leve para casa. Sempre há quem lhe pague a “saideira”, por isso mal um pé de cana chega a um bar e já anuncia:
-Paga uma “saideira” aí meu!

IEIÉ DE SAFINA (deficiente mental e físico)

IEIE era uma docura de criatura, cheio de paz, tímido, caladão... Não podia ser tratado como louco, afinal, tinha atividades trabalhista e servia como fidelidade ao seu Manoel e Dona Safina; o casal que lhe dera guarida. IEIÉ era um deficiente físico, com retardamento mental. Tinha um constante sorriso nos lábios, embora sempre pálido e triste. IEÍE, cuidadosamente se esmerava nas poucas etapas, das tarefas que lhe confiavam o casal Manoel e Dona Safina, como limpar o quintal, a frente da casa e abastecê-la com água potável, trazida do rio, no lombo do jumento, em incansáveis idas e vindas. Por vezes ele abastecia a vizinhança, certamente para ganhar alguns trocados do Velho Otaviano, Ozano e Seo Osvaldo França.

Era comum as pessoas confundirem os deficiente físico como loucos, deficientes mentais; um nem sempre é o outro; afinal, os homens tidos como normais, são os que mais cometem loucuras, no cotidiano de sua existência;o louco atira pedras, fala palavrões e viver no limite do abismo, entre a razão e a loucura; são eles que atraem atenção dos meninos, por suas condições especiais as vezes conflitantes; os meninos buscam tirar-los do individualismo, no qual muitos se fechavam, trazendo os, ma maioria das vezes, de forma dolorida, para a realidade de suas vidas, enquanto os homens tidos por normais, ignoram os conflitos vividos entre os meninos e os loucos, que em suas formar chamam atenção, como se um pedisse ao outro, ajuda!

Os homens tidos como normais, esses sim, devemos temer suas loucuras convenientes.
Flamarion Costa
Enviado por Flamarion Costa em 29/01/2014
Reeditado em 28/03/2017
Código do texto: T4669637
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