"Profissão de Alto Risco" = Memórias de Um Vendedor de Livros"

   Naquele tempo, em 1968, eu, nos meus vinte e um anos de idade, considerava aquele meu cliente especial, importante funcionário do Banco do Brasil, um velhinho de cinqüenta e poucos anos (hoje em dia, com os meus sessenta completados em abril último, vejo agora que ele era ainda um garotão...), mas o importante é que ele era realmente especial como cliente e como figura humana. Vivia comprando coleções de livros em minhas mãos ou fazendo encomendas ao meu irmão e sócio permanente naquela época.
  Um certo dia precisávamos resolver um problema pra lá de urgentíssimo, uma coisa inadiável, uma pendência que não poderia de maneira alguma passar daquele dia nem que a vaca tossisse. E a solução veio deste cliente extraordinário, do qual já sabíamos muitas coisas um tanto quanto estranhas.
   Ótima pessoa, muito bem educado, reservado no modo de ser, possuía, no entanto, alguma esquisitices que seu alto salário lhe permitia ter. Por exemplo, a casa dele, enorme e bem localizada, tinha quatorze cômodos, incluindo os banheiros. Ele tinha em casa quatorze televisores. Um para cada cômodo. Assim como tinha também quatorze rádios, quatorze vitrolas ( existia isso ainda) e mais quatorze vezes um monte de coisas.
   Pois bem, naquele dia de trabalho sob alta tensão, em que tudo teria que dar certo, esse cliente inesquecível passou por nós, parou-nos a caminho do elevador e pediu que fôssemos à sala dele.    Claro que fomos correndo.
- Vocês têm aí uma lista das coleções?
- Temos sim senhor.
- Me deixem dar uma olhada.
   Entregamos a ele a folha mimeografada com a relação das cem obras que havíamos escolhido para trabalhar e ele leu-a por muito tempo enquanto eu e meu irmão nos servíamos de vários cafezinhos da garrafa térmica dele. Amigo do peito...
   Depois de muitos e muitos minutos ele passou um risco de cima abaixo da folha e disse:
- Levem estas aqui à minha casa. Quanto será que dá tudo?
   Somei voando todas as cifras, disse o valor já esperando um pedido de desconto, quando ele sacou o talão de cheques, preencheu-o e entregou-me. Que grana!!!
   Saímos correndo dali, fomos até o fornecedor, compramos as cinqüenta obras e corremos para a casa dele, na Brigadeiro Luiz Antônio. A esposa, uma mulher feíssima, de cara mais fechada que banco aos sábados, nos atendeu e mandou entrar sem dar uma única palavra. Descarregamos as caixas da encomenda e nos mandamos.
- Rapaz! A mulher tem cara de assassina de filme americano...
- Dá até medo...E o marido é um cara legal...Não dá pra entender...
  No dia seguinte, para nossa maior surpresa ainda, o cliente nos chamou de novo à sala dele. Queria as outras cinqüenta da lista e mais uma vez fez o cheque do total sem pedir desconto. Que grana de novo!!!
   Corremos no fornecedor, pusemos as cinqüenta no carro e lá fomos nós de novo para a Brigadeiro.
   A mulher abriu a porta com violência, deixou-nos descarregando na sala e foi para os fundos da casa. Mais uma vez sem uma única palavra.
 Quando eu ia saindo ela apareceu. Vinha com uma das mãos às costas e com a outra enfiou um dedo na minha cara enquanto gritava feito uma alucinada:
- Se vocês, seus filhos de uma puta, venderem mais uma coleção de livros para o meu marido, sabe o que vai te acontecer?
   Assustado com os gritos nem tive tempo de responder: a mulher tirou a mão das costas e nela vinha um facão enorme em direção ao meu pescoço. Felizmente parou alguns milímetros antes de minha pele enquanto ela continuava sua frase:
- Eu vou cortar o seu pescoço fora. Vou decepar sua cabeça com esse facão.
  Juro que vi a morte de perto. O facão era imenso, a mulher era mínima, e a ponta daquela coisa estava na minha jugular. Fiquei estático, apavorado, e apenas olhando pra ela.
  Meu irmão, já no carro, nada percebeu. A desgraçada esperou estar só comigo pra não ter perigo de reação à altura.
  A muito custo consegui prometer a ela que não venderia mais nada ao marido dela, nunca mais, de jeito nenhum, nem que ele implorasse, e a maluca abaixou a perigosa arma.
  Não sei porque, mas quando entrei no carro estava ensopado de suor.
  O cliente continuou comprando muito, mas o endereço de entrega era outro e a mulher muito mais nova e, cá pra nós, gostosinha demais. Para essa quem um dia apontou uma coisa fui eu.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/08/2007
Reeditado em 06/08/2007
Código do texto: T594827
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