"SÓ SOBRARAM OS PALITOS!" - biografia

1---Não era nosso TIO (acho que ninguém fala tio-avô), mas chamávamos assim por ser amigo antigo de nosso avô, com idade para ser até mesmo um irmão mais velho deste. TIO FRANCISCO, lembro bem, TIO CHICO, TIO CHICOTE... --- Sou de verdade o mais velho de quatro irmãos - dois meninos, duas meninas. --- Ele aparecia para visitar nosso avô, mas as casas eram próximas e acabava aparecendo em nossa casa também. Na primeira casa, fosse qual fosse a escolhida na ocasião, pedia café fresquinho e três torradas na manteiga. Perguntava antes se era de marca mineira. Minha mãe fingia brigar: "O senhor é exigentezinho..." - mas era sempre servido com carinho. E um pouco de piedade também. Às escondidas, a gurizada certa vez contou vinte torradas - nossa avó ou mãe fazia, ele praticamente engolia. Na segunda casa, água gelada e um palito que guardava limpinho no bolso. Sempre assim... Raramente almoçava, lanchava ou jantava uma refeição mais normal. Pilheriava: "Tem alpiste? É que eu como feito um passarinho... E gosto de comida colorida feito flores na primavera..." Lavava louça num restaurantezinho - seis mesas pequenas de quatro lugares (São Jorge no alto da parede, copo com arruda... e fila na porta!) - a troco de comida (achava que cozinha de casa não era lugar de macho: nunca fritara um ovo!); dispensara que lhe dessem dinheiro: tinha magra aposentadoria. Lá não bebia nunca. "Ambiente de trabalho tem que ser respeitado sempre." Comia do bom e do melhor (passarinho, nada, ave de rapina, sim...) porque o casal de lisboetas era farto /típico botequim lusitano de apelido "pé-sujo", de cozinha limpíssima/: cozido de legumes com muitas carnes e linguiças variadas; vaca atolada (costela e mandioca); rabada com polenta, agrião e paio apimentado; mocotó com grão-de-bico ou feijão branco; língua com batata e cravo-da-índia; incrível sopa de feijão marrom com batatas e repolho; cabrito assado com brócolis refogado; feijoada carioca aos sábados (feijão preto e tradicionalmente de sete salgados para cima). --- Foi meu primeiro trabalho pois me indicou: "o menino mais honesto e decente do mundo" - e eu ia de bicicleta entregar marmitas em domicílio. Ganhei muita gorjeta! (Ensinou a beijar a moeda de maior valor.)

2---Alcoólatra com quem nem mesmo os AA conseguiriam milagre... (Será que detesto bebida alcoólica por causa dele?) Dizia-se, em variadas versões, que bebia desde garoto, dez ou doze anos, ou porque a primeira namorada, dezesseis aninhos só, toda de branquinho, flores de laranjeira (em cetim: era moda) segurando o véu, disse "não!!!" ao padre e saiu correndo ou desde que a quinta 'esposa' morrera junto com o natimorto. Aí, mesmo com cara e lábia de cigano sedutor e hipnotizador, já velho, impossível sair nas conquistas. Usava no indicador esquerdo estranho anel de prata legítima, comprado no Sul do país: uma caveira de olhos vermelhos (mini rubis de verdade!); mas, segundo ele, perdera o efeito mágico quando caíra dentro de um copo de "ingênuo" leite gelado, na ocasião do braço engessado (consequência de briga corajosíssima com leáo-de-chácara, quase dois metros de altura (segurança de porta de 'certos' ambientes), agora "usava por usar"... Verdade ou não, usando o tal anel, ganhara fácil na roleta clandestina e gastara mais fácil ainda com as mulheres, sempre no mesmo bordel de que se intitulava 'sócio protetor'. Porque ganhava ali e o dinheiro voltava para ali mesmo, no cofre da 'madame francesa-judia-polonesa MARIE CLAIRE'... com quem se deitava de graça.

3---CHICO é hipocorístico de FRANCISCO, apelido tirado do nome, todo mundo sabe, mas CHICOTE (ideia do meu pai) porque nosso "tio" achara um perfeitinho em qualquer lixeira de pracinha e descobriu a utilidade para espantar cachorros (que inexplicavelmente costumam seguir mendigos abstêmios ou bêbados, verdadeiros anjos da guarda zoológicos, o leitor já reparou?)... e as moscas. Tio, em folga de lazer, sentia-se elegante. Imunda a roupa, mal cheiroso ele - terno bege descosido e desmantelado, a gravata azul marinho de crochê esfiapento ou a vermelha escura de cetim como um pano mole pendurado ao pescoço. Sapatos nos pareciam maiores que os pés (também achara na rua, nas ruínas queimadas de um circo abandonado), o que lhe dava um andar ainda mais bamboleante. Sempre assim... Figura nacional chapliniana, percebo hoje... Contava que, numa encarnação anterior, teria sido o grego Diógenes que morava num barril e carregava uma lanterna......... Nós o respeitávamos, tolerávamos em 'jogo de diplomacia familiar'. Ria à toa do que se falava, perguntava em teatral voz alta sobre nossa escola, secretamente sobre as minhas namoradas (ainda inexistentes) e ensinava o que chamava "certas gostosas safadezas". Daí é que me despertou o desejo de pegar nas mãos das vizinhas... nissei, italiana e paulistana mesmo, t-r-ê-s conquistas ao mesmo tempo... uma sem saber da outra... A evolução e a revolução de "onde pegar" veio depois, prática lenta. Grande orientador sexual! Que eu lembre, exaltou tanto o clube que resolvi ser sãopaulino por influência de TIO CHICOTE.

4---A menina mais velha tinha medo dele - o bom dia (ele detestava boa tarde ou boa noite, fosse a hora que fosse, nossa mãe ensinara) era de longe... A caçula, ainda muito pequena e sem senso crítico-preconceituoso, beijava-lhe a mão direita e dizia "Bênção, tio!" E ele a beijava no alto da cabeça, disfarçando uma lágrima de cada lado: "Estou resfriado!" Sempre assim... Um apelido carinhoso para cada um de nós. Eu era "Cigano" (porque me ensinou e aprendi rapidamente o que não era para aprender tão cedo, por exemplo, sobre certas conquistas amorosas), o outro menino "Caçador" (quatro incompatíveis pássaros barulhentos numa gaiola grande e um lagarto amarrado perto do tanque) e havia a menina "Fujona", de inexplicável repulsão mútua - dizia ter medo (?!) dela, "olhar de censora adulta" (tinha plena razão). Mais tarde, ela escolheu uma bela carreira - advocacia trabalhista. Horrorizava todos os patrões acusados pelos queixosos de falcatruas. Indenizações sempre acima do valor real: "tempo de espera e danos morais". Humanista - comissão dela abaixo da indicação do sindicato. Ora, a "Amorosinha", como ele chamava a mais novinha, gostava muito de sorvete "duro", ela dizia. Aí, passou a (tentar) trazer... picolés. Colocava o embrulho no bolso traseiro, caminhava quarteirões sob o sol. Nestes momentos, mais de um cachorro o seguia, tentando lamber as pernas da calça. Náo entendia e sacudia, sem mira alguma, o famoso chicote. Na hora da entrega: "Ih, não sei o que aconteceu. Comprei quatro picolés de boa qualidade numa padaria bonita, até com lâmpadas fluorescentes, mas fui seguido por cachorros vagabundos ladrões. Só sobraram os palitos!" Eu mais velho, dava na minha mão para que eu distribu[isse pelos outros sobrinhos.

5---Sumiu cerca de dois meses.

6---Quarto dele, na favela, com cadeado. Caíra na rua sem documentos e quase em coma. Levado por policiais que vagamente o conheciam de vista, "aquele nomem que carrega sempre um chicotinho", para um hospital (estadual de muito bom nível, na época). Melhorou em parte, mas só sabia dizer o nome, FRANCISCO DE ASSIS... Virava o rosto para a parede e chorava, chamando "CLARA, CLARA..." - quem seria? imaginariamente a antiga namorada do verdadeiro religioso italiano ou ele tivera uma CLARA particular, nunca revelada? A noivinha do altar?

7---Por acaso reconhecido certo dia por nosso vizinho, quartanista de Medicina, estagiário. Meu avò e meu pai correram na hora da notícia, porém não mais o encontraram vivo. Em casa, a "Fujona" chorou muito, agarrada a mim. "Medo é cisa ruim, não é mesmo? Mas eu gostava dele..."

Todos nós gostávamos!!!

F I M

Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 29/07/2018
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