GUILIETTA MASINA

LA SIGNORA GIULIETTA

Estava a fumar aquele que haveria de ser o seu último cigarro quando a enfermeira a chamou e a introduziu no gabinete do médico que se levantou para lhe beijar a mão.

- Então, Doutor,quanto tempo tenho de vida?

De regresso, não atinou com as chaves nem com a mala e entrou no apartamento estonteada e deixou-se cair no sofá para telefonar à sobrinha.

Gelsomina, Cabíria, Julieta, Gabrielle, Eleonor, Camilla, tantas vidas emprestadas no celulóide ,nos palcos para que de súbito o fim se aproximasse como um cavalo louco.

Ela decidiu antes da morte, passar em revista o filme da sua própria estrada – a de uma actriz aplaudida por intensos desempenhos de personagens ingénuas, a braços com circunstâncias cruéis “Não sou cidadão de nenhum país em particular, sou um cidadão do mundo”.Guilietta Masina considerada um Chaplin mulher ou seja o estilo da sua arte transcendia fronteiras e pertencia não a um mas a qualquer lugar no mundo.

- Estou, querida?Fala a tia Giulietta.O médico confirmou que tenho uma neoplasia pulmonar e de que me restam apenas três meses de vida.Vou juntar-me ao Frederico mais cedo do que imaginava.

E, desolada, desatou a chorar.

Ela nascera em Bolonha.O Pai era violinista e a mãe professora.Ela a mais nova de quatro filhos.Sobretudo para aliviar o orçamento da família viera fazer companhia desde criança a uma tia viúva que vivia em Roma até à sua entrada para a Universidade onde se formou em Literatura e Filosofia.

Andou no Colégio das freiras urselinas, a tia pagou-lhe lições de voz, piano e dança e impôs-lhe a condição de ela nunca vir a tornar-se actriz que era a carreira de uma mulher perdida.

E fora difícil competir com as Loren, as Lollobrigidas, as Cardinale e as Pampanini e com todas as outras mamalhudas e rebolonas que viriam oferecer-se ao marido e que Fellini viria a caricaturar nos seus filmes, principalmente em “A cidade das mulheres”.Mulheres de fartos recursos de que se dizia amiúde “Mamma mia ,com aquelas mamas, nem precisa de representar.”

Conheceu o futuro marido num programa de rádio, enamoraram-se, casaram e a sua união produziu desde logo importantes resultados artísticos.

Em “A estrada” ela firmou um género até então meio ignorado, o trágico-cómico.Em “As noites de Cabíria” o seu retrato de uma pobre prostituta a combater nas ruas da cidade, desafiaria as convenções e renovaria o significado à palavra resistir com uma interpretação marcada pela inocência e pela força.

Mas Guilietta não hesitou em sacrificar a carreira para se devotar e dedicar quase inteiramente à sua vida pessoal e ao seu casamento.Uma senhora para alguns, uma parva que se sacrificou pelo marido para muitos.

Vista de lado e com inveja por outras actrizes egoístas, centradas apenas em si próprias, grandes cabras sem coração,umas queridas doçuras por fora e aço por dentro.

Frederico Fellini já realizador de culto e líder de uma nova cinematografia compreendeu que se tinha casado com uma mulher de nível superior e trouxe-a de volta para juntos fazerem o seu primeiro filme a côres, uma das obras inesquecíveis e únicas da Sétima Arte “Julieta dos espíritos” demonstrando que o encanto da Masina não se deixava ensombrar pelo das Sandra Milo, Valentina Cortese, Caterina Boratto e Sylva Koscina que também andavam por lá no filme.

Quando a protagonista na última cena abre a cancela da casa de bonecas e caminha pelo pinhal, a música do Rota sobe e o espectador sente-se enlevado para uma outra dimensão sem igual com a sua expressão éterea e conformada com a vida.

O mundo culto rendeu-se aos pés do casal, choveram os prémios da crítica, Globos de Ouro e novos indícios para a obtenção do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, troféus já conquistados com outros filmes que reuniram ambos os conjuges.

Masina era requestada por realizadores renomados e aguentou o confronto com os velhos mitos como Katherine Hepburn, Margaret Leighton ou Edite Evans.

Mas nem tudo foram rosas.Houve que pisar muitos cardos.Abortou na sequência de uma queda das escadas e o filho tão querido e desejado finalmente nascido, morreu com apenas um mês, vítima de encefalite.

Os projectos de Frederico levaram-no muitas vezes para filmagens longe de casa e junto de matilhas de putéfias folgazonas.Ela foi obrigada a engolir alguns desvarios e derrapagens conjugais por amor sob a troça cerrada de outras resabiadas.

Mas voltou-se para o Teatro, criou grandes papeis com dramaturgos respeitados como Eduardo de Filippo.Fez um programa de rádio de grande sucesso em que respondia aos ouvintes por carta!

Nos anos setenta, protagonizou duas séries na televisão muito aclamadas “Eleonora” e “Camila”.

E a certa altura, já mais para o fim,o marido disse-lhe:

- Já não somos jovens, Giulietta.Falta-me fazer um filme revivalista do grande cinema em vias de desaparecer.Hollywood reconheceu várias vezes o nosso trabalho.Gostaria de reconhecer o deles.Já tenho na ideia um esboço do guião.Aceitarias entrar se eu conseguisse convencer o Marcello?A actriz e o actor da minha carreira como director!

O Mastroianni aceitou logo mesmo sem ter lido o guião de “Ginger and Fred”sobre dois dançarinos e imitadores da célebre dupla, em espectáculos de vaudeville convidados para irem a um programa de televisão reviver os velhos tempos.A Ginger Rogers já uma matrona de fugir, quis processá-los mas sem resultados e o filme foi um êxito.

Guilietta acompanhou Fellini para receber um Óscar honorário pelo conjunto da sua obra em Los Angeles.Ele referiu-se à Esposa no seu discurso de agradecimento.

- A minha Tia Giulietta conseguiu ser uma grande Actriz e manter um casamento intacto durante cinquenta anos.É uma proeza. Rara! – afirmaria a sobrinha que agora a ouvia a anunciar a sua própria morte.

- Eugénia, minha querida.Tenho que te pedir um favor.Pede ao Mauro Maur, o trompetista que toque “A estrada” do Nino Rota quando transportarem o meu caixão para o cemitério.E enterrem-me junto do Frederico e do nosso filho claro.

- Tia, por amor de Deus, queres encenar a tua própria morte?

A Masina, um clown feito mulher, a grande e espantosa diva, uma trágico-cómica dos palcos e do cinema morreu a 23 de março de 1994, cinco meses depois da morte do marido.

Ao seu funeral acorreram centenas de pessoas entre eles, família, titulares do governo italiano, artistas, colegas de profissão e muitos, muitos fans.De óculos escuros, Monica Vitti, outra grande e carismática actriz italiana caminhava de olhos baixos, visivelmente comovida com o final de uma das suas actrizes modelo.

Flashes, câmaras, uma grande salva de palmas quando o esquife de Guilietta foi levado para fora da igreja para ser transportado no carro funerário com destino ao cemitério de Rimini para junto dos entes queridos e de súbito fez-se um momento de silêncio confrangedor, rompido por um solo de trompete a tocar o tema musical do filme “A estrada” enquanto os presentes de lágrimas nos olhos escutavam com contenção, em sua homenagem.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 12/05/2019
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