SARAMAGO E A MUSA

Quando ela entrava no cabeleireiro da praceta, junto ao largo do Areeiro o pessoal ficava meio histérico, perdia a noção e espetava inadvertidamente o bico da tesoura, o pente ou a ponta do secador na cabeça das clientes que estavam a atender e que soltavam gritinhos de dôr.

- Buenas Tardes.Vivam!

Era exuberante, simpática, sorridente e falava com todos.Num espanhol adaptado e compreensível.Era como a corneta que se ouve antes da tourada.alguém com o sangue na guelra, um raio de sol vibrante ou um cometa que atravessa o firmamento e deixa um rasto de luz a reverberar .A vivacidade e a espanholice numa combinação esplêndida.

Como é que ele não se apaixonara logo?

Na altura em que se conheceram ele já tinha plantado uma árvore, escrito não um livro mas vários, feito uma filha e não um filho, passado por uma carreira jornalística e conquistado autonomia com os prémios e o reconhecimento de o “Memorial do Convento” que escrevera já com sessenta anos de idade.

Quando um cabecilha do partido com que ele havia se identificado em tempos criticou a sua posição algo dissidente sublinhou que ele só conseguira escrever a sua obra prima depois de senior, o grande escritor respondeu placidamente ao entrevistador que o questionara na sequência do Prémio que lhe fora atribuído.

- E então o que é que o José Saramago espera do Futuro?

- Não espero grande coisa porque aos sessenta e dois não pode haver muitas expectativas.

Mas a jovem jornalista espanhola, vinte e oito anos mais nova , pediu-lhe para o entrevistar e começou por agradecer ele ter escrito aqueles livros.Foi uma questão de meses.

Ele não tivera dificuldades com as mulheres.Era alto, bem apessoado e inteligente e quando as tomava e elas tinham uma pálida noção da sua genialidade transportavam-se ao céu num abrir e fechar de olhos,como que estremeciam de alto a baixo trespassadas por uma espada e caíam consoladas na terra.Fora assim com uma das mais célebres,uma menina velha de boas famílias, também ela um prémio Camilo Castelo Branco com uma eficaz rede de conhecimentos que lhe tinha conseguido proporcionar o lugar ideal para ele escrever a sua grande obra.Mas talvez uma generosidade a que não escapasse um vago sentimento de superioridade que inconscientemente o irritava.

Ela aliás como uma Senhora que sempre fora, recusava-se a falar sobre esse passado, mesmo agora condecorada pelo Presidente da Republico e já do alto dos seus oitenta anos em que as figuras como ela se pareciam todas periquitos pintados de baton vermelho.

Pilar dispôs-se a aproximar-se dele sem superioridade , a admirá-lo como um criador extraordinário e um homem maduro muito atraente e o fogo acendeu-se poderoso e com uma chama que os devorou aos dois com uma rapidez insana.

Ela deixou tudo para trás e deu-se de corpo e alma.Foi a sua tradutora para castelhano, a sua agente, a sua secretária, a sua gerente e a mulher devotada e apaixonada que lhe restituiu a alegria de viver.Ele soçobrou a todo aquele encanto e intimamente considerou-se sortudo e eleito.Como era possível aquela dádiva num momento em que a maior parte do comum dos homens tem a certeza que entrou sem volta na antecâmara da morte?

Houve ofertas de Fellini e Spielberg para adaptarem a sua obra ao cinema.Ele mandou-os a todos polidamente às urtigas e ela apoiou-o nas suas mais difíceis decisões.

Pilar e José abraçaram em conjunto o Projeto Saramago, combateram burocratas e hipócritas que procuraram boicotar o seu caminho para o sucesso internacional da sua Obra.

As estrelas foram propícias.”Levantado do Chão”, “O Ensaio sobre a cegueira”, “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e outros livros arrasaram os leitores mais exigentes e chegou o Prémio Nobel da Literatura, façanha nunca vista para um autor português.

Ela esteve com ele em todos os momentos, serviu-o abenegadamente, vestiu-lhe o fraque, acompanhou-o na Cerimónia em Estocolmo e ensaiou com ele a vénia a prestar ao rei que seria vista por milhões em todo o mundo.

Esta mulher alta e bonita que tirava o jornal das mãos do marido quando era a hora de almoçar tinha sido sempre uma alma rebelde e insubmissa.

Uma Blimunda que não se rende era a mais velha de quinze irmãs, levara a última bofetada do pai aos vinte e três anos, considerava ter sido uma mãe relapsa e ficaria para sempre cativa da sombra gigantesca de Saramago mesmo depois da sua morte.Presidia à sua Fundação, encontrar-se-ia com chefes de estado, faria prelecções e conferências, ultrapassaria com fulgor os vinte e cinco anos de vida conjugal, tendo sido reconhecido o seu papel vital.

Até Mário Soares já muito envelhecido comentaria para as câmaras de televisão no seu estilo de D.João V na decadência:

- Ela foi-lhe sempre tão dedicada… – como se estivesse a falar das enfermeiras que o tratavam na última fase da sua vida.

A obra de Saramago excitava o público e os realizadores que a divulgavam e discutiam a propósito dos seus próprios projectos teatrais e cinematográficos: a dignidade e elegância do actor Augusto Portela que interpretou a figura do Padre Bartolomeu de Gusmão na versão dramática do Convento com a passarola voadora e um estrado gigante em construção como parte integrante do cenário, a velha actriz secundária que teve o momento mais alto da sua carreira quando muito orgulhosa mostrou os seus seios descaídos no espectáculo que o Grupo de Teatro “O Bando” levou à cena no Culturgest no centro de Lisboa até à grande produção internacional de “O Ensaio sobre a Cegueira” dirigida pelo talentoso realizador brasileiro Fernando Meireles que comoveu o próprio Saramago aquando do seu visionamento:

“Fernando, estou tão feliz com o filme como quando terminei de escrever o livro!”

A Musa Pilar del Rio não deu nunca parte de fraca, recrudesceu,e aprimorou-se na sua missão.

Talvez haja afinal razão para a frase tão atacada de chauvinismo:

“ Por trás de um grande Homem, há sempre - ou quase sempre - uma grande Mulher” .talvez uma Musa, alguém Especial, Determinado e Maravilhoso.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 25/08/2019
Código do texto: T6729175
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