OS DOIS CARLOS CUNHAS

Wanda Cristina
“Com a Flauta Onírica, o poeta baiano Carlos Cunha cria um dos mais belos textos da poesia brasileira atual. As palavras, em suas mãos, assumem um extraordinário significado mágico. Os símbolos transcendentes das palavras são mostrados com muito vigor intelectivo. A realidade e o mito se confundem na sua extrapolação poética. Carlos Cunha abrange os dois graus do ser: o consciente e o inconsciente.” Escritor maranhense Carlos Cunha, do livro "Moinhos da Memória, 2ª Edição, 1981, p. 86. 
 
 
 
O professor Antônio Lisboa Carvalho de Miranda, maranhense, um dos grandes expoentes da Literatura do Maranhão e de além-mar, é um daqueles estudiosos que consegue, com muito zelo, fazer um resgate de autores nacionais e, em particular, de autores maranhenses. Em seu site antoniomiranda.com.br, ele coloca em destaque, por exemplo, a memória de Carlos Cunha, poeta, crítico literário, ensaísta, cronista, professor e jornalista maranhense. No estudo, revela algumas de suas poesias, dentre as quais “Punhal de Aurora”, “Condor Ferido”; trovas e outros fragmentos do seu livro “Cancioneiro do Menino Grande”. Ao final da pesquisa, inclui, no acervo bibliográfico do maranhense Carlos Cunha, um poema intitulado “Canto do Natal No Perímetro Urbano”, do livro “Breve Romanceiro do Natal”, 1972, publicado pela Editora Beneditina Ltda., em Salvador.

Nos meus estudos literários sobre o maranhense Carlos Cunha, não constatei qualquer poesia que tivesse o título “Canto do Natal No Perímetro Urbano”, ainda que o maranhense fosse um exímio poeta em temática de Natal, a exemplo de seus poemas “Bilhete a Papai Noel” e “Canção de Natal Para o Menino Pobre”. A coincidência da temática social e a descoberta de um homônimo fizeram-me sair, insistentemente, à procura daquele que seria, em primeira instância, um sósia intelectual de Carlos Cunha, meu pai.

Não sei se o termo exato para comparar os dois Carlos Cunhas seria "sósias", posto que sósia é uma palavra oriunda da mitologia grega, mais precisamente da Comédia “Anfitrião”, de Plauto. Como sempre, Zeus, no afã de conquistar mulheres alheias, tomou a forma de Anfitrião, esposo de Alcmena, para, naquela oportunidade, com ela deitar-se. Sósia era o escravo de Anfitrião. Hermes, filho de Zeus, assumiu a forma humana do escravo Sósia para vigiar o portão, enquanto Zeus conquistava a mulher de Anfitrião. Foi assim que sósia passou a designar “cópia humana”. Da relação entre Zeus com Alcmena, nasceu o semideus Hércules.

Nas coincidências que envolvem os dois Carlos Cunhas, não sei se há o dedo de deuses; mas sei que se trata de um fato que merece um olhar mais aguçado sobre os dois escritores. Localizei, na obra “A Literatura na Bahia – Livro 5 – Peji de Inventos”, do professor Cid Seixas, o capítulo intitulado “Do Velho Preciosismo ao Non Sense Pós-Moderno”, no qual Seixas traça um perfil estilístico daquele Carlos Cunha de origem sergipana que fincou sua carreira literária em Salvador. Enquanto o maranhense Carlos Cunha publicou seu primeiro livro em 1967, intitulado “Poesia de Ontem”, o Carlos Cunha da Bahia publicou, em 1961, seu livro de estreia “Goivos de antófilos”.

Segundo Seixas, “Goivos” traduz o fascínio do Carlos Cunha da Bahia pela estética preciosista Parnasiana. Diz Seixa (p. 13): “goivo é uma planta ornamental de flores rubras, raiadas de branco. Muito cheirosas e apreciadas para compor arranjos decorativos, estas flores são encontradas também na cor amarela. Antófilo, como se sabe, é o apreciador ou o entusiasta, quase obsessivo, das flores. (...) Mas, goivo também é uma palavra que evoca gozo ou alegria, uma vez que o nome da flor vem do latim gaudium, que segundo o dicionário dessa língua quer dizer ‘satisfação, prazer, regozijo’”.

O maranhense Carlos Cunha traz, em sua poética, uma verve simbolista por meio da qual se manifesta um romantismo vestido de modernidade. O romantismo é fruto da sua condição de homem intrinsecamente espiritual e humano. Dentro de suas fases, verifica-se o poeta que sabia burilar, com maestria, os versos da medida velha. Em sendo contemporâneo do Modernismo, também soube dar aos versos brancos e livres sua arte literária. Mas, sem postergar esses dois extremos de sua criação literária, Carlos Cunha deixou para posteridade uma safra de sonetos que era comum na corrente parnasiana, mas, contrariamente, trabalhou-os, em sua construção, o estilo humanístico sob a égide do petrarquismo.

O Carlos Cunha, oriundo de Sergipe, que se ligou ao movimento literário da Bahia, era filho do professor sergipano Cecílio Cunha. Carlos Cunha maranhense era filho do condutor de bonde Carlos José da Cunha, que trabalhava na antiga Ullen Company. Carlos Cunha de Sergipe passou a fazer parte da geração da Moderna Poesia baiana, por meio da antologia do mesmo nome, tornando-se um agitador cultural atuante na esfera da Bahia. Por seu turno Carlos Cunha maranhense publicou, em 1974, a antologia “Poesia Maranhense hoje ou 50 anos de poesia”, transformando-se também em um dos grandes representantes e divulgadores da cultura maranhense de seu tempo, resgatando autores antigos e promovendo novos escritores, inclusive artistas plásticos; estes últimos, ele os divulgou na obra intitulada “A Páscoa das Gaivotas”.

Conforme informações de Seixas, Carlos Cunha da literatura baiana conseguiu propagar-se em movimentos de ideais coletivos, ladeado por vários outros escritores que viam nas antologias uma ferramenta para divulgação de suas obras de cunho moderno. Em 1963, Cunha da Bahia adquiriu um estilo neorromântico, com a obra “Ilhas para morrer”. Um fato curioso registrado por Seixas é o de que o sergipano Carlos Cunha, nos anos de 1970, recolheu os exemplares de seu livro de estreia, que estavam nas mãos de seus leitores mais íntimos; e, em 1977, por ocasião da publicação de seu livro “Flauta Onírica”, ao fazer referência à sua bibliografia, riscou a palavra “antófilo”, do título da sua primeira obra, deixando apenas “Górvio”.

Na opinião de Seixas, essas atitudes de Carlos Cunha contribuíram para que sua produção não fosse conhecida pelo leitor, impossibilitando o acompanhamento e a comparação das diferentes fases poéticas deste escritor. Disse Seixas (p. 16): “O leitor fica privado de acompanhar e comparar as diferentes estações do trajeto poético desse escritor arredio, mas significativo; posseiro de dicção pessoal e inconfundível, no quadro da poesia baiana da segunda metade do século XX”. Observa-se, nas palavras de Seixas, um recolhimento voluntário de Carlos Cunha da literatura baiana, sem que se possa cogitar o motivo que o fizera limar o próprio nome do círculo literário soteropolitano. Sabe-se, conquanto, que Sergipe deu à Bahia um filho ilustre que ainda hoje é cantado e decantado pelos seus admiradores.

Eis as semelhanças e diferenças entre os dois Carlos Cunhas: o maranhense deixou uma obra que serve de herança aos filhos gonçalvinos; membro da Academia Maranhense de Letras, onde ocupou a cadeira nº 33, fundada por Viriato Correa; com mais de 24 obras publicadas, de críticas, ensaios, poesias, folclore, palestras, crônicas, oriundas de seu espírito irrequieto de jornalista, escritor, professor e declamador; muitas das quais servem hoje de fontes para os estudos da cultura maranhense. Mesmo assim, poucos de seus conterrâneos tentam resgatar a memória desse ilustre filho do Maranhão.

Já o baiano Carlos Cunha trilhou caminhos relativamente diferentes: não deixou de participar da vida intelectual de Salvador, chegou mesmo a trabalhar na administração da Academia de Letras da Bahia, mas, ao final, manteve-se silente como escritor. Por isso, acentua Seixas: “Creio que a obra poética de Carlos Cunha ficou reduzida às três fases distintamente marcadas pela publicação dos seus livros Goivos de antófilo, ilhas para morrer e A flauta onírica". Outro fato curioso apontado por Seixas é que Carlos Cunha da Bahia não quis a inclusão de seus poemas na antologia “Poesia Baiana do Século XX”, organizada por Assis Brasil.

O Carlos Cunha ludovicense está na “Poesia Maranhense do Século XX”, na qual Assis Brasil faz a seguinte referência: “Luiz Carlos da Cunha, um dos intelectuais maranhenses mais atuantes em sua época, nasceu em São Luís no dia 18 de maio de 1933, tendo se destacado como jornalista, cronista e poeta, além de ter fundado jornais e colégios. Em destaque, também, os comentários sobre os livros de inúmeros poetas veteranos e novos de sua terra, abrindo, neste setor, um leque para a edição de livros”. (p.215-216) .

Na Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 55, de março de 2017, Edivaldo M. Boaventura, membro da ABL, discorre sobre o trabalho dignificante e incessante de Carlos Cunha da Bahia, como diretor executivo daquele sodalício, ao lado do então presidente Claudio Veiga (p. 31): “Empreendia a promoção cultural, sabia animar as pessoas a escrever e dava inclusive sugestão de títulos. Atuando na administração, durante vinte e cinco anos, apoiou criativamente várias iniciativas. Além de poeta, era, verdadeiramente, um animador cultural. Com o conhecimento da vida literária, atraiu jovens e escritores para o convívio acadêmico”

O sergipano Carlos Cunha, de coração baiano, por diversas vezes fora convidado a tomar assento em uma cadeira da ALB, dada a primazia de sua poesia e, também, dada a sua dedicação por aquela casa de cultura; mas ele sempre recusava o convite. Faleceu aos 71 anos de idade, em 18 de dezembro de 2011, no Hospital Português, na Bahia. O Carlos Cunha gonçalvino faleceu aos 57 anos, no dia 22 de outubro de 1990, também no Hospital Português, mas, em São Luís do Maranhão. Coincidências ou não, de Maranhão a Bahia, os Carlos Cunhas escreveram belas páginas literárias em favor da Literatura Brasileira.
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 19/08/2020
Reeditado em 28/08/2020
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