O Avô

Ficava, imóvel, a olhar pela janela. Perfil austero, casaco de xadrez, livro aberto no tampo da secretária, mãos nodosas de dedos cruzados. A paisagem estendia-se pelo campo florido até lá ao fundo onde transitava o povo para ir ao mercado ou à feira. Olhava mas não via nem flores nem os tons de verde do campo, via, sim, como num filme, a vida que tinha passado. Chegou novo e sozinho. Aos quinze anos já se acostumara a não falar por serem as palavras terreno fértil para questões que evitava. Respondia por monossílabos com acento selvagem e voz áspera. Tinha as mãos com calos e o interior ainda menino, mas em breve haveria de amadurecer sem experiência nem escolhas. Escolhe quem pode e ele não pôde. Ainda assim casou, teve filhos, comprou a casa e a terra, geriu o tempo sem férias até se aposentar. Fica agora a evocar memórias. Aprendeu muito com ela, tornou-se um pai temido e ainda hoje todos se calam quando chega. Gosta de ler e lê muito. Os óculos na ponta do nariz adunco, o cachimbo apagado preso aos dentes, o pensamento solto. Um dia, ao anunciarem o almoço ou o jantar, vê-lo-ão de borco sobre o tampo de carvalho quando se acabarem os passeios interiores, o regresso ao que passou, a meditação sobre as muitas histórias que lhe contavam as páginas que lia devagar. Viver, pensou, pode ser ainda um exercício mentalmente intenso mas o corpo frágil já não queria ir, já lhe pedia folgas, já só queria olhar o campo animado de flores.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 30/05/2021
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