Ribeira Grande: Nascimento de uma Vila (Biografia) II

Ribeira Grande: Nascimento de uma Vila

(Biografia)

O Palco - II

Por alturas da festa de 1508, quem poderia ter ido tocar música à Ribeira Grande? Em 1483, Fernão Álvares, de Vila Franca do Campo, identificava-se como gaiteiro, se fosse vivo e de saúde poderia ter ido. Outro que poderia ter ido: João Gonçalves, o Tangedor, que fez parte do primeiro elenco de Ponta Delgada, em 1499, criado do Marquês de Vila Real, tal como Lopo Ares, se tivesse saúde (estava ainda vivo), poderia ter dado um ar da sua graça com o seu instrumento.

Falando de festas realizadas na Ribeira Grande em 1555 e em 1578 (conforme actas da Vereação daqueles anos), ficamos a saber que foram custeadas por rendeiros do verde, padeiras e mordomos de São Sebastião e Nossa Senhora da Estrela. Que a igreja de Nossa Senhora da Estrela tinha um órgão. E que as festas poderiam incluir folias, da terra e de fora, dança das moiras, representavam a pela e as judengas, tambores, tangedores de atabaques, pelas, bailes de gitanas ou danças de fitas. É certo que mais de quatro décadas depois da elevação a Vila, alguma coisa (muita ou pouca) poderia, entretanto, ter acontecido. Não se pode pôr de parte a possibilidade de haver outras formas lúdicas. Além do mais era uma festa única e irrepetível. Porém diferentes ou iguais às referidas nas catas de 1555 e 1578, a festa da elevação a Vila, teve de certeza jogos, danças, bailes, música, movimentos, sons. Barulho. Troar de canhões? E comida e bebida à custa da nova Câmara ou de beneméritos?

Além da presença do povo, de crianças e de mulheres, os principais intervenientes foram, sem dúvida, o capitão-do-donatário e os moradores principais da terra. O clero, que não é mencionado, devia ter marcado presença. Além do povo, que, apesar de não ser elegível, mas que tinha voz na eleição, é de se presumir a existência de um bom lote de escravos, que trabalhavam no pastel, no trigo e nos trabalhos mais árduos. Por exemplo, em 1493, Rui Vaz, dito do Trato, que tinha casa no Morro da Ribeira Grande, no seu testamento promete, dali a dois anos, libertar a sua escrava Maria Rodrigues. Porém, vendo melhor por outra perspetiva, a escrava poderia residir em Vila Franca do Campo e não na Ribeira Grande. Com respeito ao Morro, volto a repetir a pergunta, que já fizemos para Lopo Gonçalves, em que morro, havendo três – o de Baixo, o do Meio e o de Cima -, morou Rui Vaz do Trato?

Ernesto do Canto fala de uma ermida de Nossa Senhora das Candeias, no Morro, ermida feita por Jácome Dias Raposo. E também dá conta de outra ermida no Morro, a ermida de Nossa Senhora da Saúde. Pedro da Ponte Raposo, no seu testamento de 13 de Dezembro de 1626, manda reparar esta ermida, que ficava junto às casas onde morava. A segunda ficava (as ruínas foram retiradas) na rua da Saúde, no morro de Baixo. A casa (modernizada) ainda lá está. Quer Candeias quer Saúde, pelos nomes de família, Raposo, parecem pertencer à mesma família. Haverá confusão no nome das ermidas? Terá mudado de invocação? O Outeiro do Galvão, que pertenceria ao Morgado Bento de Medeiros Galvão, envolvido na tramoia (mais uma caterva de boatos do que realidade) dos Calcetas em 1835, terá tido casa, ficava no morro do Meio, um local com uma vista de cortar o fôlego sobre o imenso vale da Ribeira Grande a Nascente. E agora? Não sei.

Outro dono de escravos é Paulo Gago, filho de Luís Gago. Frutuoso diz que tinha ‘(…) muitos escravos e escravas,’ mas também ‘ criados e criadas, e grande família; vivendo em uma rica quinta que tinha na Ribeirinha, termo da Vila da Ribeira Grande, onde tinha a cabeça de seu morgado, pelo que era havido como o mais rico homem da dita vila.’ Rui Tavares, um dos pais da Vila da Ribeira Grande, cujo pai, morara na Ribeira Seca, ‘viveu sempre muito rico na vila da Ribeira Grande, com muita família de escravos e criados (…).’ Em 1510, Lopo Gonçalves tinha escravos.

Para 1523, numa altura de ‘peste’, damos conta do fim trágico de uma escrava. Veja-se o modo como o dono se lhe refere e o que faz com a pobre: ‘(…) logo aquela noite deu o mal em uma negra sua que dormia na manta, a qual enterrou ele sem ninguém o saber.’

Não sei se se poderá ou não aplicar a 1508, não existem registos para essa data, mas entre os anos de 1542 e1600, com muitas falhas nos registos, em 933 casamentos na igreja de Nossa Senhora da Estrela, encontraram-se quatro casamentos entre escravos: dois de escravos entre si e dois entre um escravo e uma mulher livre. A autora do estudo não logrou encontrar nenhum consórcio entre um homem livre e uma mulher escrava, no entanto, surgindo muitos filhos de escravas, a autora crê que fossem filhos de amancebamentos.

Além dos escravos, os senhores e filhos ‘mancebos,’ montados em seus cavalos, rodeados por esposas, filhas, criadas, criados e escravos, iam-se chegando ao local. Quais dos sete filhos, ao tempo da elevação, todos bons cavaleiros, teriam acompanhado Rui Tavares? Por exemplo: ‘João Tavares, Gaspar Tavares, João Rodrigues Tavares, Gaspar Tavares, Belchior Tavares (…), Garcia Tavares e Pero Tavares, que era moço pequeno de catorze até quinze anos (…).’ João Tavares, na década de vinte, iria casar em Ponta Delgada e ser Juiz do Ordinário daquela Vila.

Rodrigo Anes, o primeiro Vigário, estaria também presente. Pessoal de Vila Franca, da Vila de Ponta Delgada, mais os foliões e gente dos arredores que se preparavam para a festa. Dos principais, Frutuoso, além dos seus nomes e progénie, traça-nos o seu perfil: hábeis cavaleiros, liberais, amigos dos pobres, ricos, com muitos escravos e escravas. Dos restantes, quebra o silêncio para salientar qualidades, entre as quais, uma força invulgar: ‘(…) João do Monte, o Velho, filho de João de Piamonte, da Vila da Ribeira Grande, tomava uma mó de engenho de pastel e a carregava só, sem ajuda de outrem, em cima de um carro.’ Como o fez igualmente para João Teixeira, ‘da Vila da Ribeira Grande, foi de grandes forças (…).’ Ou por ser veloz: ‘Adão Lopes, da vila da Ribeira Grande, corria tão ligeiro que não achou quem corresse tanto como ele, senão só um, chamado Galvão.’ Ou, ainda, como no caso de ‘um Brás Dias, da Ribeira Grande, foi [por ter sido] o melhor jogador de pela que houve em todas as ilhas dos Açores, porque jogando de ambas as mãos, tanto lhe dava jogar como uma, como com outra; e, logo após ele António Roiz e Fernão Martins, do lugar da Maia.’

É provável que alguns dos mercadores e seus acompanhantes, que vinham negociar o pastel e o trigo, tenham participado na festa da elevação a Vila do Lugar da Ribeira Grande. E mesmo os que vinham de fora moer trigo aos moinhos da terra.

Talvez estivesse aí, um mercador de Lagos, no Algarve, e um seu cunhado chamado Rui Martins. Haviam estado, pelo menos um deles, no ano anterior. Fernão Álvares, não havendo nada em contrário, haveria de ter vindo da sua casa na ribeira do Salto, na Ribeirinha, para o centro da Ribeira Grande. Lopo Gonçalves e o seu escravo Francisco também lá estariam. Francisco Martins, que tinha terras no Morro, e Lourenço Eanes, serrador, também.

(continua)

Mário Fernando Oliveira Moura

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 24/10/2021
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