Ribeira Grande: Nascimento de uma Vila (Biografia) - III

Ribeira Grande: Nascimento de uma Vila

(Biografia)

O Palco - III

Naquele dia, os pastores, como qualquer pastor, andariam pelos matos e serras a guardar os gados. Eram ‘porcos, vacas e ovelhas’ que ‘exportam durante todo o ano para Portugal.’ Lá de cima das pastagens, dependendo do lado do vento, terão eventualmente ouvido o som dos gaiteiros. Terão avistado, se não houvesse nevoeiro, o mar de gente lá em baixo, junto à ponte de madeira da praça. Ou os que guardavam gado nos currais dentro da vila: ‘Afonso Álvares do Amaral (…) teve grande curral de gado vacum, com seu pastor que o pastorava na vila da Ribeira Grande.’

Pescadores, que arriavam batéis em Santa Iria ou nas Poças, estariam em terra naquele dia especial. Os que pescavam de caniço, de cima das rochas, e os calhauzeiros que andavam por cima das pedras da costa às lapas, búzios e caranguejos, estariam também entre a multidão que seguia a festa. Moleiros dos moinhos ali perto, homens que trabalhavam os engenhos de pastel, ou os das serras-de-água, pedreiros, carpinteiros, padeiras, tudo gente que se misturava na multidão. Havia os que naquele dia andavam acamados. Talvez alguém nascesse naquele mesmo dia. Ou morresse. Ou saísse ou viesse em trabalho à Ribeira Grande.

De onde viria aquela gente? Entre os anos de 1542 e1600 (com falhas nos registos) registaram-se 933 casamentos. Muito embora os registos sejam frequentemente omissos quanto à origem, ainda assim, viu-se que quase um quarto dos homens que casaram, eram de fora da terra. Do Continente do Reino, homens do Porto, de Lisboa, de Braga, de Ponte de Lima, de Vila Viçosa, de Tavira, da Feira, de Arcos de Valdevez, de Beça, de Avelães de Caminho. Ou de fora do Reino: de Veneza. Ainda de Espanha: de Sevilha, das Canárias, de Jaén.

Na Ilha de São Miguel, fora do núcleo da Vila da Ribeira Grande, no Concelho da Ribeira Grande, havia gente de Rabo de Peixe e da Ribeira Seca. No Concelho de Ponta Delgada, de Ponta Delgada, Rosto de Cão, Capelas, Fajã e Relva. Do Concelho de Vila Franca do Campo, de Vila Franca do Campo, do Porto Formoso, da Maia, da Achadinha, da Achada, do Faial da Terra e da Povoação. Ainda da Ilha de São Miguel, Água de Pau, Lagoa e Nordeste. Das outras ilhas dos Açores, só não há gente do Pico, Faial, Flores e Corvo, havendo gente da ilha Terceira, de Santa Maria, de São Jorge e da Graciosa. Há ainda gente da ilha da Madeira. E do Safim, no Norte de África.

Havia, em número menor, mulheres de fora que casavam na Ribeira Grande, 32 mulheres de fora para 200 homens de fora. De Ponta Delgada, Fenais e de Rosto de Cão; de Vila Franca do Campo, Porto Formoso, Achada, Maia, Achadinha. Dos concelhos do Nordeste e da Lagoa. Dentro do Concelho, de Rabo de Peixe e da Ribeira Seca. Da vizinha ilha de Santa Maria, de Moreira, Ponte de Lima e Seia, no continente do Reino e das Canárias.

Como seria aquela gente? Será que se encontrássemos alguém daquele tempo, nos iríamos entender? Dificilmente: temos os seus genes, somos herdeiros da sua cultura, mas somos muito diferentes. Não só porque falariam um português diferente do nosso, nem porque a cultura material fosse outra bem diferente, mas porque viviam basicamente valores diferentes dos nossos. Para eles uma palavra, aparentemente igual à nossa, teria um sentido diferente do nosso sentido actual. E quanto ao aspecto? Não se conhece o aspecto físico daquela gente. Mas, pequenos laivos, retirados aqui e além da narrativa de Frutuoso, cruzados com dados de um relatório sobre uma série osteológico exumada nas terras do Ex-Mosteiro de Jesus, podem dar-nos uma ideia geral (muito vaga) de como seria aquela gente. Quanto a idades, segundo estudos nesta área, pode dizer-se que então a esperança média de vida andaria pelos 30 anos. O Relatório Osteológico, quanto a idades, conclui: ‘Os 30 adultos parecem repartir-se pelos vários grupos etários já que há representantes de adultos jovens, de meia-idade e relativamente idosos.’ Prosseguindo, especifica: ‘Quanto aos não-adultos, o elemento mais novo será uma criança que terá morrido com 18 meses, aproximadamente, seguida com uma criança com 2-3 anos. Da segunda infância, haverá, no mínimo uma criança com 7-8 anos e dois adolescentes.’ Devemos ter presente que, tendo estes exemplares sido exumados numa zona confusa de entulho, nos podem remeter para uma datação anterior ou posterior a 1508. Mais não se pode dizer, no entanto, ficamos com uma ideia aproximada. Quem sabe até se algum destes ossos não serão os dos seus fundadores: Pedro Rodrigues da Câmara e da esposa?

Marília Tavares, estudando os livros de óbitos de 1556 a 1600 da Matriz de Nossa Senhora da Estrela (com muitas falhas), quanto à mortalidade, segundo sexo e flutuações sazonais, ajuda-nos a chegar um pouco mais à vida do Ribeira Grandense de então. A mortalidade ao longo do ano distribui-se de forma diferente, sendo o número de óbitos na Primavera ligeiramente superior ao do Verão. Morreram mais mulheres do que homens

Qual a razão ou razões? A investigadora admite a possibilidade de tal poder ser explicado por um maior número de mulheres, ou seja, pela existência de um excedente feminino, cifrado em 9,62%, muito embora, nascessem mais rapazes do que raparigas. Outra possível justificação: maior mortalidade infantil masculina. Porém, não era registada a morte de menores de 7 anos. Acresce ainda um elevado número de viúvas. O ano mais letal foi 1582 (72 óbitos) e o menos letal foi o de 1565 (12 óbitos), seguindo-se-lhe os anos de 1559 (13), 1558 (15) e 1561 (17).

A gente do povo, com um nível de vida inferior, viveria, em média, menos. Os mais abonados ultrapassariam aquela média. Gaspar Frutuoso morreu aos 69 anos em 1591. Um Pero Teixeira, será o nosso, faleceu aos 80 anos. Mas houve casos excepcionais, por exemplo, o construtor da ponte da Ribeira Grande, Fernão Álvares, terá alegadamente falecido com 110 anos. Excepções até entre os escravos: um preto, Adão Matoso, faleceu aos cem anos.’ Ou até um Pedro Afonso, da Barba, com cem e vinte anos. Não sabemos, é bom dizê-lo, o grau de fiabilidade destas informações.

Quanto à altura média, as opiniões divergem, uns dizem que seria igual à actual, outros, por seu turno, manifestam opinião contrária. Porém, no que todos concordam é que variaria de acordo com o tipo de alimentação. Assim, os mais abastados, com acesso a mais comida, tenderiam a ser mais altos do que os menos. Os resultados do relatório osteológico, apontam, numa série estudada, para ‘(…) valores de 1,59 metros (mais ou menos 6,54 centímetros) e de 1,60 metros (mais ou menos, 6,76 centímetros).’ Noutra série, os números são superiores: ‘(…) cerca de 1,84 metros (mais 6,54 centímetros),’ subindo ligeiramente para cerca de ‘1,87 metros (mais ou menos 6,54 centímetros),’ e ainda mais para uma altura máxima de ‘1,92 metros (mais ou menos 6,54 centímetros).’ No entanto, as médias situam-se entre ‘1,74 metros (mais ou menos 6,76 centímetros) e (…) 1,69 metros (mais ou menos 6,76 centímetros).’

O relatório, pelo número reduzido de dentes, não chega a qualquer conclusão sobre a dieta. Todavia, identifica diversas patologias, a saber: ‘artrose (degenerativa articular) na coluna e nas articulações dos membros, entesopatias (degenerativa não articular),’ indiciadoras de ‘uma actividade física mais intensa nos indivíduos onde tais alterações foram detectadas; patologia traumática – hematomas e traumas na sequência de, muito provavelmente, acidentes domésticos; patologia infecciosa, exclusivamente reacções não específicas, algumas delas secundárias a pequenos traumas. Não foi identificada qualquer patologia infecciosa específica como a tuberculose, lepra ou sífilis.’

(continua)

Mário Fernando Oliveira Moura

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 24/10/2021
Código do texto: T7370498
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