BIOGRAFIA RICARDO FONTOURA - ÚNICO LOCAL DO MUNDO QUE NÃO EXISTE MOTOR

Ricardo viveu uma situação insólita em Veneza, na Itália, durante uma viagem de férias que fez com Myrinha, a sogra Dona Myrian e a filha Tereza. Veneza é um local único no mundo. Com seus múltiplos canais, suas centenas de pontes, é uma cidade romântica, exótica e complexa para se locomover.

Todas essas características encantavam Ricardo, que fazia questão de conhecer lugares assim. Sua alma ficava em euforia ao travar contato com uma cultura nova, com cidades de arquiteturas desafiadoras. Ricardo certamente ficava imaginando os esforços de engenharia ao longo dos séculos que fizeram Veneza ser possível. Que fizeram Veneza ser Veneza.

O quarteto aproveitou bastante os roteiros turísticos de Veneza. Não perderam tempo e se embrenharam pelos labirintos líquidos da cidade. Conheceram o Mercado de Rialto, com sua história de séculos de comércio. Viram igrejas, palácios, andaram de gôndola pelos canais e se deliciaram com as iguarias da culinária italiana. Ricardo adorava tudo aquilo, fazia cada minuto valer a pena.

No último dia em Veneza, já com o check-out feito no hotel, deixaram as malas no porto – em uma hora iriam embarcar para outra cidade, próxima -, o grupo foi se despedir da Pizza de San Marco, o coração da cidade. Como uma criança feliz em dia de festa, Ricardo pegou sua scooter e subiu uma rampa, próximo a uma escadaria, ao lado da Piazza. Era uma rampa íngreme e que exigiu força da motinha e ousadia do piloto. Estava na Itália, estava em Veneza, tudo era possível, deve ter pensado Ricardo.

Acontece que a scooter não entendeu assim. Perdeu força e, do nada, morreu o motor. Não se movia para frente nem para trás. Ricardo apertou todos os botões, forçou de todas as formas e não teve qualquer resposta da máquina. Estava preso na rampa na scooter. Myrinha, Dona Myrian e Tereza estavam embaixo, na praça, distraídas com a paisagem. Nem chegaram a ver a proeza de Ricardo.

Quando elas foram o procurar, eis a surpresa: Ricardo estava preso na motinha, no alto da rampa. Não tinha como sair de lá sem o motor. A opção seria carregar ambos nos braços. As três mulheres não eram páreo para a tarefa, que seria ideal para seis homens fortes, no mínimo. Estavam com um problema e o tempo corria contra.

Ricardo não pareceu estar abalado ou preocupado. Quando as três mulheres chegaram perto, ele sorriu de forma pura, se levantou um pouco da cadeira e disse: “Tira retrato, olha onde eu estou!”. Simples assim, como uma criança travessa diria ao fazer uma estripulia.

Ele era assim: conseguia ter calma e senso de humor até quando a situação não estava tão favorável. Isso valia para uma viagem de lazer, mas valia também para impasses bem duros no trabalho, como negociações desvantajosas, crise no setor agrícola ou pecuário. Sua cabeça não entrava em colapso quando a situação exigia ações de emergência. Com serenidade, seu cérebro conseguia entregar soluções mais práticas. Era um talento que lhe era muito útil em situações difíceis.

Mas o bom humor e toda a calma do mundo não seriam suficientes para tirar a motinha e Ricardo do lugar. Ele precisava de ajuda externa, de alguém que fizesse o motor funcionar. Ele não podia sair de lá e buscar essa ajuda. Mas Myrinha podia e foi o que ela fez. Deixou Tereza como ponto de apoio para Ricardo e Dona Myrian (já com seus 90 anos de idade) e saiu para buscar a solução, que ela não fazia ideia qual era e onde encontraria.

Como haviam saído há pouco tempo do hotel, Myrinha achou bem lógico procurar lá o socorro. Era um local onde seu rosto seria reconhecido, portanto mais provável de receber ajuda de estranhos. Ao chegar ao saguão do hotel, foi direto à recepção. A moça que fazia o atendimento era simpática e sorria fácil. Tinha um rosto amistoso, aquele tipo de pessoa que ama o trabalho e que fica feliz em realizar boas ações. “Moça, estou com um grande problema e queria que você me ajudasse”, disse Myrinha, sem rodeios e um inglês pausado, para ser bem compreendido. A simpática funcionária do hotel, abriu o melhor sorriso e, com confiança e algo doce, devolveu: “Grande problema? Pode falar, já está resolvido!”.

Myrinha suspirou aliviada e ficou bem feliz com a resposta da moça. Já tinha a boa vontade dela como aliada, era um começo promissor. Agora faltava a capacidade técnica de encontrar a solução. Cabia a ela o segundo passo, ir para o desfecho. Contou à recepcionista o problema e disse que precisava de mecânico para olhar a scooter. Um mecânico resolveria em questão de minutos e eles poderiam seguir viagem. Tinha um barco a tomar, já estavam com passagens compradas e hotel reservado em Lugano, na Suíça.

Ainda com o sorriso cativante, mas sem a confiança inicial, a moça disse: “Você realmente está com um grande problema. Aqui em Veneza é proibido por lei ter veículo com motor, aqui não tem nada com motor. Aqui não pode ter lambreta, nem vespa, nada. É proibido, a não ser aqueles que têm no grande canal, os barcos”, explicou.

De todas as cidades do mundo, das centenas de milhares de cidades que existem no mundo, Myrinha estava na única que é proibido ter motor. E estavam com um problema no motor, que precisava ser solucionado.

Ainda numa última tentativa, Myrinha perguntou se havia alguém que consertasse vespa. A simpática moça disse que não havia, por não haver nem vespa na cidade toda. “O que tem de motor aqui, sem ser de veículo?”, indagou, quase sem esperança. A moça disse que havia uma loja especializada em consertos de eletrodomésticos. Ela disse onde ficava. Era um roteiro difícil de ser encontrado para um turista. A cidade parecia um labirinto, cheia de enigmas. Myrinha, com algum custo, encontrou a loja. O problema agora é que o dono só falava italiano, não entendia nada de inglês. Myrinha, por sua vez não conseguia se comunicar na língua dele.

Após alguns minutos de impasse e de ausência total de entendimento na comunicação, entra uma moradora local para buscar sua máquina no conserto.

E por sorte, eu tinha passado, nos dias que a gente estava lá caminhando, eu lembrei das referencias que ela me deu. Que era uma Rolex, virando não sei o que, a segunda vez teve que alguém ir comigo. Virava na Rolex, virava e em cima tinha a loja, subia a escadinha. Cheguei lá tinha aquele monte de máquina branca, linha branca toda lá. Aí eu chamei o cara. E o cara só falava italiano. Aí eu tentava explicar, aí chegou uma pessoa lá na hora, uma moradora que foi buscar a máquina dela.

Percebendo a embaraçosa situação, ela resolveu ajudar como tradutora. Ela falava bem inglês. Myrinha explicava em inglês e ela traduzia para o moço em italiano. Myrinha chegou a ficar feliz de novo por ter encontrado um canal para estabelecer uma comunicação. Agora era só resolver o problema do motor. O moço da loja entendeu todas as palavras traduzidas, mas disse que não tinha a menor condição de ajudar. Não tinha as peças necessárias. Mas indicou um colega que poderia ajudar.

O endereço do outro técnico foi um desafio de logística absurdamente complicado. Tinha que passar debaixo de muitos viadutos, cruzar muitas pontes, virar em muitas ruas, subir e descer muitas ladeiras e, se tiver sorte, chegar ao destino. A solícita mulher que serviu como tradutora se ofereceu para levar Myrinha até o local. Além de tradutora, serviu de guia.

Ela, no entanto, não pôde ficar, só a deixou na porta. Chegando lá, para completar os desafios do dia, o moço que a atendeu não falava uma só palavra que não fosse em sua língua nativa. Myrinha já estava cruzando a fronteira do desespero e temendo que não conseguiria ajudar Ricardo a sair da rampa. Pensava nele lá, impotente, sem conseguir se mover.

Aí resolveu testar a mímica e pronunciar palavras que pudessem ser compreendidas pelo dono da pequena oficina. Parecia um diálogo entre dois seres da época das cavernas. Sem qualquer ritmo, sem qualquer conexão de frases e entendimento mútuo. Até que ela pronuncia a palavra “fusívele”. Ele, arregalou os olhos: “fusíbele, fusíbele!”.

Eureka! Era isso. O problema era solucionável. O homem pegou uma caixa de ferramentas e se dispôs a ir com Myrinha até o local onde a scooter estava. Ao chegarem no local, perceberam que Ricardo e sua scooter já tinha se transformado em uma atração para os outros turistas. Um grupo de indianos tirava até fotografias. Como se Ricardo fosse uma estátua ou algo assim. Ricardo não parecia estar incomodado com a situação. Estava até se divertindo com toda a cena.

O dedicado técnico abriu sua caixa de ferramentas e começou a trabalhar. Abre um lado, torce parafuso, mexe em fios, troca o fusível. Faz uma ligação direta e, milagre, a scooter ressuscita, passa a funcionar normalmente. Ricardo abriu seu melhor sorriso, Myrinha suspirou aliviada, assim como Dona Myrian e Tereza. Os turistas em volta, aplaudiram com entusiasmo, como se o drama dos brasileiros fosse um número, um espetáculo dentro do roteiro turístico de Veneza.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 30/06/2022
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