Hoje é amanhã?

No outro dia uma aluninha de três anos me perguntou, "hoje é amanhã? Achei a pergunta tão poética, eu tinha prometido dar um pirulito no dia seguinte, então ela queria saber se já chegara o dia de ganha-lo, o objetivo era fazer com que eles tivessem noção de tempo. Mas fui eu quem viajei no tempo e me vi menina, desejando que o tempo passasse e eu pudesse crescer logo e descobrir um pouco dessa vida. Agora com sessenta anos, me vejo vivendo meu amanhã, tão desejado ontem.

O melhor é que aquela menina ainda vive em mim, conversa comigo, e até me faz ver coisas que antes eram dor, raiva, vergonha, hoje não passam de fatos desagradáveis, que a vida nos impôs, então eu senhora, explica pra ela, com todo carinho, que não tem importância, que ela deve relevar, nesse momento ela sorri e me diz que está tudo bem, que de uma certa forma ela cresceu um pouco, que aprendeu muito nesse caminhar, que pois a boca no trombone quando precisou, que isso foi muito bom! Se livrou de muito peso, agora se sente leve, pronta para voar e continuar descobrindo o mundo. O objetivo agora é viajar, Itália será o primeiro porto, vem de lá toda nossa herança genética, que apesar de cega, está gritando aqui dentro, herança de dor, de guerras, abusos, roubos, fome, mas também de beleza sem par, tudo isso precisa ser visto, visitado, para fechar esse ciclo de vida, vamos começar por Pompéia, um dia estudado no livro de história, fez um link interno de um lugar de alguma forma conhecido. Os museus também precisam ser visitados, porque é lá que estão as memórias de um povo, de um mundo velho, que partiu para construir novos mundos. Eu tenho por hábito marcar na minha memória lugares e emoções vividas, quando eu desejo retornar vou exatamente para aquele marco e revivo toda a beleza eternizada na memória, um deles foi no telhado de uma casa em Avellaneda, Boenos Aires, eu estava em cima de uma vassoura, pousando para uma foto, quem a tirou foi um antigo amor portenho, a foto eu nunca vi, o amor se acabou, mas o momento está aqui, intacto, pronto para ser visitado por mim, numa viagem no tempo para abastecer de emoção boa um futuro vazio, não sei se outras pessoas lidam com o tempo como eu, mas posso dizer que essa técnica inventada na minha vida foi uma sacada genial, porque os dias vão se apagando no viver da rotina, Milton Nascimento disse numa de suas canções, " Hoje não passa de um dia perdido no tempo..." de alguma forma eu saquei isso quando era muito nova, então tratei de fazer uns momentos emoldurados na minha memória, e estão lá como fotos presas em destaque na parede, se eu precisar é só dar uma olhada, que as emoções retornam, dando uma descarga de emoção na minha alma, tanto pro bem como ao contrário, infelizmente alguns momentos ruins também ficaram eternizados nessa galeria, mas ele foram exorcizados ao longo do tempo, muitos já não emitem emoções, outros estão sendo apagados cuidadosamente, pela menina que mora em mim e tem trânsito livre no tempo e nas minhas memórias, ela convive carinhosamente comigo.

Um dia num fim de curso na escola do ensino do segundo grau, uma professora veio a mim, me abraçou e disse, Glória, não deixe nunca essa criança que vive em você morrer, siga como vem vivendo, ela foi a única que viu minha menina em ação, isso é raro, só mesmo um olhar de professora para ver. Ela não deve estar viva, se estiver está muito velha, gostaria de dizer pra ela, eu consegui!

Meus cabelos embranqueceram, meu corpo declina e a menina está aqui intacta, viva! Feliz.