Sobre "escolhas" (Fragmento de uma biografia)

Como bom aposentado, passei alguns anos da minha vida sendo assíduo frequentador da Praça da Alfandega no centro histórico de Porto Alegre. Depois do chimarrão e depois do café da manhã eu pegava o meu exemplar do Correio do Povo, descia a Marechal Floriano até chegar a Rua da Praia, para sentar no banco preferido à sombra das árvores. Ali, eu abria o jornal e admirava os passantes. Seguidamente, me deparava com o poeta Maria Quintana, que também andava pela Praça admirando a Vida passar despercebida.

A Rua da Praia era passarela de executivos, senhorinhas e senhoritas e de padres e freiras, estes últimos, acompanhando as meninas do Santa Inês com suas tranças e uniformes comportados. A Praça também era ponto de engraxates, vendedores de pipocas e guloseimas, vendedores de bilhetes da loteria Federa e jogo do bicho, pessoal do artesanato e pessoas como eu, que ficavam ali para “esquentar o sol” em tardes de outono, inverno e primavera.

Porém, (e sempre tem um porém), na Praça também circulavam desocupados, mendigos, punguistas, mulheres de vida “duvidosa”, agiotas e compradores de ouro, todos vigiados pelo olhar da Lei, que passeava garantindo a paz e a ordem.

Frequentei a Praça da Alfândega por dez anos até que nos mudamos para o interior.

Durante o meu tempo de “praceiro” convivi com personagens curiosos, presenciei cenas inusitadas e ouvi histórias de Vida, as quais esqueci.

Porém, (eis o segundo porém), um personagem ficou na lembrança, um jovem alto, magro, cabelos compridos, cujo olhar se perdia no nada. Sentado ao meu lado ele observava a Praça, o balançar das folhas nas árvores, escutava o canto dos sabiás, mirando as pessoas de alto a baixo, sem se importar comigo.

Certa manhã, um veículo militar estacionou discretamente e dois soldados se aproximaram do rapaz, que os acompanhou sem reclamar.

Em plena vigência do temido AI-5, pensei que nunca mais veria meu pseudo amigo, porém, (este será o último), para surpresa minha, na segunda-feira seguinte lá estava o rapaz, de barba feita, cabelos cortados, roupas limpinhas e um par de congas novas nos pés.

Não nego meu alivio, quando constatei que, a cada quinze dias, aquele procedimento se repetia.

Então, percebi que, sempre que retornava ele pronunciava duas perguntas: “Mar de rosas”? ou “O quinto dos infernos”?.

Embora morrendo de curiosidade nunca me atrevi a perguntar do que aquilo se tratava e depois que deixei a capital levei aquela curiosidade comigo.

Assim, se foram anos e quando a Luciana, minha neta, veio passar um tempo conosco, não sei como o assunto veio à tona.

__Deixa comigo vovô, hoje em dia na internet não tem o que não se descubra.

Depois de alguns dias, ela sentou-se ao meu lado, deu um suspiro e contou o que tinha descoberto.

O rapaz era filho de um alto membro do exército e foi descoberto participando de atos contra a ditadura. O rapaz foi preso e antes de saberem do parentesco ilustre, o pobre apanhou muito.

Colocado em frente ao comando militar, coube ao pai escolher qual seria o castigo para o filho, ou seja, o “mar de rosas”, equivalente a sessões periódicas de eletrochoques, ou “o quinto dos infernos”, desaparecimento e morte.

Diante da perspectiva de determinar a morte do próprio filho, o pai preferiu o “mar de rosas”, cuja escolha transformou o filho em um morto vivo.

___E ele ainda vive – perguntei com a voz embargada.

___Não. Ele morreu em decorrência de problemas neurológicos.

___E quanto ao pai?

___Quanto ao pai... Depois de deixar o comando, teve morte repentina ao se ferir “limpando a própria arma” e foi enterrado com honras militares.

Ondina Martins
Enviado por Ondina Martins em 21/06/2023
Reeditado em 21/06/2023
Código do texto: T7818989
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