<<Santa Indiferença, Batman!>> ou <<O Nojo de Quem Tem Nojo>>

0. Existe um charme fascinante em quem não liga pra nada. Em quem utiliza conceitos displicentemente— tais quais democracia, D, cristandade, sexualidade e direito —; defende o abortar como se comesse chocolate; supõe que o estado deveria, sim, senhor, proibir discurso de ódio. Existem milhares de indivíduos Homo Sapiens que possuem 0 noção de pureza. Não é do sabor moral deles — e o leitor pode facilmente ser uma dos — provar da Realidade e sentir Nela contido o Sagrado como tempero cotidiano.

1. Disse uma vez: não gosto de dançar forró. Não gosto de me esfregar em uma pessoa estranha. O moralista respondeu em deboche (é sempre isso): <<Nossa, que puritanismo católico é esse?>>. Era pra ser provocador. Quem diria. Ele tem nojo do meu nojo. É o criptomoralismo do sujeito: diz-se antimoralista e suas declarações são óbvios decretos éticos.

2. Não se poder achar o corpo, santo. A Liberdade, santa. O Sexo, santo. Na cabeça deste criptomoralista, é dever seu (moral, ops) <<desmitificar>>, retirar o véu transcendente, analisar o discurso <<por trás>> do discurso. Tadinho, uma consciência tão imanente: goza somente com o destruir das ilusões alheias — e nunca lhe passou pelo espírito que talvez viva ele na ilusão de que todos vivem em ilusão.

2. 1. A diversão do sociólogo é desmascarar os costumes e lançar os seres na mesma podridão estética em que existe. Uma mente mecânica insiste em mecanizar o orgânico, sempre.

3. Que puritanismo católico é esse? Resposta: que puritanismo antipuritanista é esse?

Qual a preciosidade no cimério?

Qual a graça da gracinha?

Que insistência tamanha nos órgãos sexuais, na masturbação, na provocação, nos <<temos que falar sobre>>? Parece até que o iconoclasta vê santidade na blasfêmia... parece até que constrói sua moralidade em torno de certos mandamentos éticos... parece até que ser indiferente ao transcendente é realmente uma questão de profunda diferença.

4. E eu vejo nas mulheres um oni-laconismo fascinante. Olhar de peixe morto, desapego à vida, entreguismo puro. E no homem, o contrário: oni-puritanismo. É do homem digladiar pela <<honra>>, coisa de existência alienígena à maioria das mulheres: <<por que guerreiam tanto?>>, perguntam elas. <<Por que a obsessão pelo sexo anal?>>; que há de tão hipnotizante no Conceito que faz o homem manter a parrésia sob sublime tempestade?

5. Homens são elétricos. Mulheres, magnéticas.

6. Só o homem pode ser enfeitiçado pela raia.

7. E quem ouve o som dos trovões teme o tal do lápis mágico da Marina. Mudar o mundo é tocar onde não se toca. Mas eles irão até o fim, pois enxergam, na essência, apenas projeção do pensamento. O cientista, o niilista, o ateu, o imanentista, o igualitarista, o revolucionário: as figuras selecionadas nos ecossistemas atuais que ditam nossas vidas creem ser os únicos que creem em nada. Criptocrentes. Rezam a cartilha de não rezar cartilha nenhuma; supõem que o Universo é um todo mecânico feito de partes a-conscientes; e ainda acusam nós, os puritanistas, de enxergarmos demais na gota, no céu, no corpo. Pois é: pior é enxergar apenas que as pessoas enxergam, jamais o que enxergam.

8. Cegos pela própria consciência irônica, ainda não perceberam a ironia da própria ironia. Não é o conservador que leva tudo muito a sério: é o igualitarista que se enterra no próprio subsolo, que teme olhar os olhos de D, que mata e tudo destrói em torno de seu criptofundamentalismo.

NÃO HÁ NADA, diz ele

Já havendo. Do contrário, nada precisaria ser dito.

9. A vontade do profano é a vontade de ser único, egoísta, exclusivo, onipotente. É de existir antes e fora da existência, não ser regrado por esta de maneira alguma. Queimar as igrejas para manter um secreto templo interno, este sim, (ainda) não profanado de forma alguma. Escutai, Esquerda: vossa hora chegou. Que medo é esse?

10. Admiti que o templo subterrâneo da Esquerda, qualquer esquerda que seja, é a Vontade. Não se toca, não se fala, não se admite ela. Mas, se pudermos insistir na profanidade, vemos que a intenção mesmo é proteger a Criança.

<<VII - Respeitarás e protegerás as crianças e os animais>>; dizem eles. E dizem vós, pois sois o Caminho da Mão Esquerda.

11. A teologia da Esquerda pura é esta: comemos o fruto e tão logo o saboreamos, <<eles>> nos arrancaram de lá. Devoraram a inocência em que vivíamos. Precisamos tomar de volta nosso corpo. O estado. Espaços públicos. A mãe terra. Nossa consciência. Decolonizar. Purificar-nos da perversidade do Poder. Sim, e depois, purificaremos o próprio Poder. Torná-lo-emos originário, remontaremos à tradição: africana, agricultural, indígena, matriarcal, naturalista — ou ainda, vazia, pluripotencial, neutra e prometeica.

12. Por isso sempre vão na pedagogia, na semente da semente da semente. Eles sabem que precisam resgatar a Criança e tirá-la dos braços Deles. Deles quem? Melhor, Dele, o:

Logofalocêntricoheteropatriarcalturbonaz@fasciracistaeurocisbináriotransgenófobosupremoclasselitistabrancoimperialcolonialistaxenoislamofóbicocapaci(ultraliberalmercadológicoaristopressãoexplora-negaciopuritradicionalista, XY, reáciocoxacareTFPhomofómisobifóyanqueatlânticobiologessênciafundamenfamilicapitalmoralistaindivigoísmoalienoreificadomiliciano, cristão, armamento-e-juramos-que-nenhuma-afirmação-nossa-será-jamais-afirmação-moral-nunca-nunquinha-somos-apenas-observadores-do-Real-sempre-desideologizados-transclassistas-apontando-o-comportamento-dos-agentes-e-estruturas-sociais-sem-capacidade-nenhuma-nunca-nunquinha-de-opressão-porque-opressão-é-coisa-de-opressor-e-nós-somos-apenas-meras-vítimas-de-tudo-isso-aí.

13. Perguntar para a Esquerda qual o crime que afinal a humanidade cometeu, dirá ela: existiu. A existência em si nos tirou do sono profundo e comeu nossa alma. Queremo-la novamente, a santa virgindade argiloforme, quando éramos livres para ser o que manda Thelema.

14. O resto, pensa o contrário: o fruto foi o fim da expulsão. Não houve alguém cruel senão nós mesmos. E eu aceito a culpa de ter dentro de mim esta fome eterna. Fazer o que: é se controlar, domesticar-se, civilizar-se, reprimir-se, sublimar-se etc.

15. Bonitinhos. querem o contrário. Soltar o peso da negativação once and for all. E então fazem um movimento original: negativar a negativação, limitar a limitação, proibir a proibição, ser intolerante com a intolerância. Mas isso tudo só duplica o monstro que destroem. Chegou a hora de negar a negação da negação e assim, fechar a tríade.

16. Por trás do iconoclasta há uma criança que teme a puberdade. Não a toa, o Jovem é necessariamente a Esquerda; o Velho, necessariamente a Direita.

17. Come Saturno, Urano; come Urano, Saturno. O Velho e o Novo se geram e se destroem infinitamente. Luz e Sombra se amam e se detestam. O que ocorre é que às vezes a Sombra é o Novo, às vezes é o Velho. O império do jovem é a modernidade. E o excesso de Brahma é necessariamente o império de Xiva, o qual se esgueira pelas beiradas do universalismo igualitário, democrático e científico: aceitar a Morte fará com que a Vida triplique seu tamanho.

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Talvez o maior vômito espiritual em forma de texto que já tive. Exausto.

Trino
Enviado por Trino em 24/06/2023
Reeditado em 24/06/2023
Código do texto: T7820919
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