Raimundo Soares Rodrigues, um mineiro feliz que tinha até um jacaré em casa

Raimundo Soares Rodrigues, um mineiro feliz que tinha até um jacaré em casa

por Márcio de Ávila Rodrigues

[22/10/2023]

Algumas das lembranças mais prazerosas do meu passado se concentram numa casa relativamente simples, situada na rua Peçanha, no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte. Era a bucólica residência do meu tio Raimundo Soares Rodrigues, de sua esposa Asarina e dos cinco filhos.

Raimundo foi o segundo dos nove filhos do casal mineiro Juvenal Soares Rodrigues (nascido circunstancialmente em Paracatu) e Laurinda Soares Rodrigues, oriunda da atual Matozinhos, bem perto de um arraial que se chamava Curral del Rey, um distrito de Sabará que poucos anos depois seria emancipado e transformado na capital do Estado, Belo Horizonte. Além dos nove filhos que chegaram à idade adulta, o casal teve mais quatro crianças que praticamente não deixaram lembranças ou registros, pois fizeram parte das amplas estatísticas da mortalidade infantil do início do século 20. Meu pai, Eugênio Soares Rodrigues, sétimo filho entre os nove conhecidos, é o único remanescente daquele círculo familiar e em julho de 2023 completou 101 anos de vida.

O meu círculo familiar era bem semelhante ao do tio Raimundo, apenas um filho a menos, e sempre viveu no bairro de Santa Tereza. Ocasionalmente íamos visitar nossos familiares do Carlos Prates. Na época, todas as linhas de ônibus tinham um ponto final no centro da cidade, portanto era uma jornada até o centro e outra até a rua Peçanha.

Minhas memórias se concentram nos anos 1960. A casa do tio seguia o padrão da época: muro baixo, um alpendre na frente da porta da sala e um quintal. Mas, a partir da entrada, se descortinava um ambiente bem atípico. Uma conexão incomum com a natureza, com o mundo animal.

Era uma mistura de minifazenda com zoológico em uma residência de tamanho padrão de uma cidade grande brasileira daquela década. Já dentro da casa, cumprimentávamos os parentes com a recepção auxiliar de vários cães e papagaios. A porta da cozinha se abria para o quintal, que tinha um grande viveiro de pássaros e, mais ao fundo, um pequeno tanque raso cercado por uma mureta baixa, compondo a residência exclusiva do Jajá. Algo inusitado para o mundo contemporâneo e até para aquela época, pois o Jajá era um jacaré.

Eu admirava o Jajá a distância, sabia do risco e que não podia me aproximar, mas não tenho o medo como parte desta memória. Bem depois eu soube de um caso interessante: um dia ele fugiu (provavelmente ainda era filhote) e foi encontrado numa pensão (hospedaria) próxima. Criou-se um alvoroço no local e os bombeiros foram chamados. Aí apareceu uma de minhas primas (creio que Nasiara), que o pegou pelos braços e carregou de volta para casa, observada pelos vizinhos surpreendidos e estupefatos. O Jajá continuou habitando a rua Peçanha por mais alguns anos até que tentou atacar um dos netos de tio Raimundo, que então decidiu que era a hora de doá-lo para o Jardim Zoológico de Belo Horizonte.

Raimundo só conseguiu se aposentar em torno dos 70 anos de idade porque a legislação da época era muito limitante com relação à contagem de tempo de trabalho quando havia a participação de órgãos previdenciários distintos. Segundo o meu pai Eugênio, ele trabalhou inicialmente, e durante muito tempo, no serviço público por indicação do sogro influente. Depois foi trabalhar no extinto Banco de Minas Gerais (BMG), mas não conseguiu somar os dois tempos de trabalho.

Na década de 1970, os filhos de tio Raimundo foram deixando a casa matriz para constituir família própria e o casal mudou-se para um sítio na cidade de Betim, região metropolitana de Belo Horizonte, onde poderia manter e até expandir seus laços com a natureza. A casa não existe mais, hoje faz parte da grande garagem de uma empresa de ônibus.

Em setembro de 1981, com apenas 71 anos, Raimundo Soares Rodrigues infartou e veio a falecer. Embora as relações fossem harmoniosas, as famílias dos irmãos de meu pai se distanciaram progressivamente. Tia Asarina faleceu em 1990 e dos cinco filhos somente Nilda e Norge estão vivos.

Aproximadamente uma década atrás, meu pai me alertou que o sogro do irmão Raimundo era um homem muito importante em sua época, era o doutor Álvaro Astolpho da Silveira. Curioso, resolvi investigar e descobri uma personalidade marcante na ciência e na cultura de Minas Gerais. Com as informações obtidas, escrevi e publiquei em 2010 um pequeno ensaio biográfico que teve boa difusão e ajudou a relembrar, para o público alcançado pelos meios virtuais, a importância que ele realmente teve. Meu ensaio pode ser acessado por um link disponível no final deste texto.

Encontrei ainda uma interessante biografia dele na internet que me usou como fonte e expandiu as informações sobre a sua longa carreira literária. O link também está disponível abaixo.

Para resumir a sua biografia, informo que Álvaro viveu entre 1867 e 1945. Nasceu em Passos, no sudoeste de Minas, mas fixou-se na jovem capital mineira, fundada em 1897. Ele era basicamente um cientista, talvez a melhor definição de seu ofício seja “naturalista”, pois a segmentação das áreas em que atuou é um formato mais recente. Pesquisava e escrevia sobre temas que envolviam, principalmente, botânica, agronomia e engenharia.

Em 1915 ele assumiu a presidência da Academia Mineira de Letras e transferiu a sua sede de Juiz de Fora para Belo Horizonte. Segundo meu pai, ele era um homem rico, que tinha uma casa boa e bem localizada na Avenida Brasil, a uma quadra da praça da Liberdade, que era então a sede do governo estadual. Quando criança e adolescente, meu pai, acompanhando o irmão Raimundo, esteve várias vezes na casa do “doutor Álvaro”.

Por óbvia consequência da paixão pelas ciências naturais, Álvaro Astolpho se permitiu uma excentricidade: batizou os seis filhos com nomes de vegetais e minerais raros, todos começando com a primeira letra do alfabeto, a mesma inicial dele e da esposa Anita (Anna Magalhães Drummond). Os dois filhos-homens foram Asplênio (nome de uma planta) e Alcino (um composto químico); as filhas eram Analcima (um mineral), Aneimia (também uma planta), Andira (é o pau-angelim, usado na arborização urbana) e Asarina (outra planta). Todos receberam um segundo prenome também começando com a letra “a”.

Asarina, a minha tia por afinidade, esposa do tio Raimundo, herdou um pouco do bucolismo familiar e batizou a filha mais velha de Nasiara, um anagrama perfeito de seu nome. Após a morte do marido ela se dedicou à poesia e escreveu vários livros. Faleceu em 1990.

Links correlatos:

Álvaro Astolpho da Silveira, um cientista importante em seu tempo - autoria de Márcio de Ávila Rodrigues - link https://www.recantodasletras.com.br/biografias/2423773

Álvaro Astolpho da Silveira - Série Naturalistas - Texto de Isabella Azevedo - link https://biologiadaconservacao.com.br/serienaturalistas-alvaroastolpho

Álvaro Astolpho da Silveira e Anna Magalhães Drummond - árvore genealógica no site Geneaminas - link https://www.geneaminas.com.br/genealogia-mineira/restrita/enlace.asp?codenlace=1322183

Sobre o autor:

Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).

Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.

Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.