"Somos quem podemos ser". Cap. I

Capítulo - I

O início de tudo.

A primeira coisa de que consigo me lembrar é do medo enorme que sentia.

Medo de provocar a ira daquele que de certa forma era dono de minha vida e de tudo aquilo que me era caro.

Talvez esteja sendo um tanto dramática.

Confesso que tenho uma imaginação um tanto fantasiosa, virtude essa adquirida em meus poucos anos de vida.

Caro leitor, peço já para que tente me entender.

Quando se é uma criança com toda a inocência característica dessa fase da vida, nem sempre nós conseguimos enxergar as coisas como elas realmente são.

Muitas vezes vemos apenas aquilo que queremos ver ou até mesmo só aquilo que querem nos mostrar.

Portanto, em meus pensamentos infantis a vida em família de que eu desfrutava era simples e perfeita, tinha pouco e esse pouco era divido entre todos nós.

E vou dizer que éramos muitos.

Contando comigo, éramos cinco crianças, mais a mamãe, o papai, minha avó, tios, tias, primos e primas, um sem fim de gente isso só do lado materno.

Já do paterno era um aglomerado de gente que ia de uma esquina quase à outra da rua onde morávamos. Se pedisse para dizer quantos parentes eu tinha eu nem mesmo saberia dizer, não sei até hoje.

Entretanto, o meu universo era meu lar porque eram as únicas pessoas com quem eu convivia verdadeiramente.

Mamãe era a pessoa mais tímida e dedicada da face da Terra.

Uma ótima “senhora do lar”.

Cuidava como ninguém da casa, dos filhos, da roupa suja e da comida a ser feita.

Não era mulher de falar muito, ao menos que eu me lembre ela sempre foi uma pessoa um tanto contida.

Para todos era um modelo de mulher e mãe, acredito que ela levava esse papel bem a sério, pois vivia para todos, menos para si mesma.

Isso até que determinados acontecimentos surgissem para perturbar a perfeita harmonia de seu lar.

Bom...

Esses acontecimentos serão esclarecidos, porém, não agora, quem sabe umas dez páginas à frente...

Voltando a falar de mamãe, lembro-me de que só depois de muito tempo é que percebi que a suposta timidez de seus atos e semblante nada mais era do que reflexos de sua total submissão.

Submissão à vida que levava, as pessoas com quem convivia e ao destino.

Destino esse que para ela tinha sido traçado antes mesmo de nascer.

Filha de nordestinos tradicionalistas, mamãe foi criada sob a linha dura da realidade.

E por tratar-se de ser a mulher mais velha de uma família de sete irmãos, a responsabilidade de cuidar

de todos acabou ficando sobre seus ombros quando minha avó foi atrás de trabalho.

Era ela quem cuidava da casa, da comida, das crianças, da roupa, levava e buscava na escola e mamãe aos sete anos já era mãe de sua própria família pelo dever que lhe foi imposto.

Deve estar se perguntando aí:

-E onde estava o senhor da casa?

Porque o sustento não partia dele como em toda família bem estruturada?

E respondo, Ele não estava.

Mamãe contou-me que meu avô deixou a família dizendo que iria comprar sapatos para os filhos, só que nunca mais voltou.

E assim, como a vida não para e a fome aperta, minha avó teve que trabalhar, ela só não sabia em que.

Até hoje esse é um dos fatos que nunca se retorna ao diálogo e ponto final.

Por consequência, mamãe precisou parar seus estudos na primeira série do ensino fundamental, tinha em casa coisas muito mais importantes a serem feitas como cozinhar, limpar, passar, arrumar seus irmãos para que eles sim, pudessem freqüentar a escola.

Ela fazia tudo àquilo que só uma mãe zelosa faria, mesmo não sendo mãe, mas sim uma irmã tão criança quanto os demais.

Com o passar do tempo ela foi moldando sua personalidade a rigor e ao sabor daquilo que o destino lhe reservava.

Morava em um bairro periférico da cidade de São Paulo, numa rua que tinha um nome que combinava muito bem com a situação financeira das pessoas que ali residiam, rua da Maloquinha.

As casas, ou melhor, os cortiços desse lugar eram pobremente construídos.

Não havia água encana nem muito menos luz elétrica.

As pessoas faziam uso de um poço artesiano que felizmente a dona e credora dos cortiços cedia, mesmo que a muito custo.

A luz provinha de lamparinas e o banheiro era coletivo e ficava do lado de fora do imóvel.

Privacidade por alí era artigo de luxo.

Hoje, lembrando-me de tudo o que mamãe me contava e ainda conta sobre acontecimentos da época, eu fico a pensar em como tudo é incrível já que nem faz tanto tempo assim.

As condições de moradia no lugar eram de todo precária, fazer o quê já que era o máximo que podiam ter.

Quem culpar por tal situação?

O pai que abandona a mãe com sete filhos para criar?

A mãe que deixa sua filha de sete anos ao sabor do vento e cuidando de seus irmãos menores?

A sociedade que desde os primórdios não fornece as pessoas mais pobres condições mínimas de subsistência?

Deus que nem sempre pode intervir nos acontecimentos da vida?

A quem culpar?

Eu nunca soube.

Passei um bom tempo da minha vida ouvindo minha mãe repetir que sua vida era um erro, que devia ter sido abortada ou nascido morta.

Sabe o que ouvir isso causa na vida de uma pessoa ou na mente de uma criança?

Talvez você consiga entender ao final deste livro, se é que isso irá virar um livro um dia.

Não a condeno por tais palavras, pois quem sou eu para condenar alguém?

Sou humana e falha.

Até consigo vislumbrar milhares de motivos para pensar como ela.

Se eu tivesse passado por tudo o que ela passou nem sei se estaria aqui viva para contar história.

Ela renunciou a sua infância e estudos para virar mãe de seus irmãos e não foi por escolha e ainda assim, como se não fosse o bastante, acabou gerando seu próprio filho aos doze anos de idade.

Como?

Deve estar se perguntando isso nesse exato momento.

Ah, como a vida pode ser triste e dura!

Analisando o caso um pouco mais friamente vejo que mamãe faz parte de algumas das estatísticas que tanto ouvi falar durante minha vida, seja na escola ou na faculdade.

Estatísticas sobre o problema da pobreza, do analfabetismo, da gravidez na adolescência e por ai vão.

Não gosto de sentir pena de ninguém.

Acho um sentimento miserável, entretanto, ao imaginar alguns horrores por ela vividos é esse sentimento maldito que me vem a mente.

Mamãe foi violentada sexualmente por um dos filhos da dona do cortiço.

Como privacidade era artigo de luxo por ali eu concluo que deve ter sido por lá mesmo, em algum beco, no banheiro, na lama, não se sabe.

Ela nunca falou sobre o assunto.

Soube do ocorrido por intermédio de uma de minhas tias depois de um belo almoço regado a bastante vinho.

Dizem que quem bebe fala a verdade.

Neste dia minha tia decidiu falar.

A violência sofrida por minha mãe resultou na gravidez, mais adiante nascimento de um de meus irmãos.

Não consigo nem imaginar o que passou ou ainda passa na mente dela ao reviver tais lembranças.

Este é um tema proibido entre nós, tanto para respeitar a sua privacidade quanto a atual paz de espírito que ela aparenta ter.

Blandos Vultus
Enviado por Blandos Vultus em 03/12/2023
Reeditado em 05/12/2023
Código do texto: T7946301
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