2 - Gatos - Gata viada

Eu estava vivendo tragédias em minha casa. Uma mãe doente com câncer e insuficiência cardíaca, um pai com problemas psiquiátricos, uma família em crise, com desavenças de relacionamento, um casamento indo lá pelas últimas e, depois, um câncer invasivo na minha tireóide (coisinha genética básica), além de problemas financeiros, que afetavam a sociedade brasileira e diretamente minha vida. 

Mas, isso, foi só detalhes. Eu não estava bem! Eu não me sentia bem. Eu estava passando por pressões como médica, como mulher, como a cabeça de uma casa e como um ser humano - que achavam que era invencível e não tinha inseguranças.

Era trabalho-casa, casa-trabalho. E em casa era mais trabalho ainda. Talvez meu trabalho como médica, lidando com as tragédias dos outros, fosse o único lazer que eu tivesse.

Lembro que eu cheguei em casa, ainda de branco, e me disseram que havia uma gata perambulando pelos telhados em volta todos os dias. Caguei e andei...

Ainda naquela época minha mãe, apesar de muito doente, ainda entrava na cozinha para fazer comidas. Ela cozinhava muitíssimo bem (um legado que me deixou). Não pensem que era um mal-estar qualquer, não... Ela entrava na cozinha mesmo se estivesse muito mal, às vezes quase morrendo. 

Eu supervisionava a desgraça e a deixava fazer o que podia, mas isso significava estar de plantão 24 horas ao dia, mesmo que significasse ficar sem dormir e muitas outras coisas. Eu tinha um homecare à la Menô em minha casa. Não imaginem e nem queiram imaginar...

O cheiro da comida sempre atraiu os vizinhos e era comum dizerem que ficavam com água na boca com o cheirinho que começava às seis horas da tarde - hora que a maioria das mulheres começam a incorporar deusas culinárias.

Nesta hora, em algum dia, eu ouvi um miado vindo do telhado alto de minha vizinha, que dava para o terraço de minha casa. Como se repetia a mesma cena, sempre ao chegar em casa, sempre nesta hora, quando eu jantava e me preparava para operar até de madrugada no hospital, eu resolvi verificar que gato era aquele. Como o tal "gato" ficava perto do exaustor da cozinha, concluí que ele sentia o cheiro da comida e tinha fome.

Olhei para cima e vi um gato totalmente branco, mais muito branco mesmo. Tudo era branco nele e vi logo que era albino - um olho azul, outro verde, mucosas muito rosinhas, pêlo quase que transparente de tão branco, muito limpo, muito delicado e muito fofo, com mais ou menos uns dois anos de vida. Parecia que tinha fugido de alguma casa. Até hoje eu não sei se tinha dono ou se veio direto do céu...

Pude observar que era meio vesgo de tão claros que eram seus olhos. Comentei com um amigo na hora: “Parece até o leão do "Daktari", aquele leão do seriado de minha infância, que era vesgo e via tudo duplicado... Como era mesmo o nome do leão?”.

O amigo lembrou: “Clarence...”.

Filme Daktari: Filmado na África e Estados Unidos num parque de animais selvagens em Los Angeles, Daktari, uma palavra em linguagem africana do dialeto Swahilli que quer dizer Doutor, era um veterinário americano que vivia na África.
Seu nome era Marsh Tracy. Daktari tinha a ajuda de sua filha Paula, a americana Dane e um nativo chamado Mike. Os Tracy tinham dois animais de estimação - o leão Clarence e a chimpanzé Judy. Clarence era vesgo e foi levado para uma reserva para ser cuidado.
A série foi ao ar nos Estados Unidos em 11 de janeiro de 1966 e saiu do ar em 15 de janeiro de 1969. No Brasil a série foi apresentado nos anos 70 até o início dos anos 80 pela rede Globo ao meio dia.
O mote da série já era o ambientalismo e durou o suficiente para deixar um marco na nossa geração.

Pensei com meus pêlos pubianos (como sempre o faço): “Este gato é branco e, por isso, seu nome vai ser este mesmo: Clarence. Ele é vesgo como o tal leão do filme. Deve ver tudo trocado também?... De qualquer forma, está com fome e está pedindo comida, miando alto todos os dias... Isso não é comum... Há algo estranho neste gato... Será que ele não entra em casa só por causa do fila idiota da minha irmã?... Vou cuidar dele”.

Esta foi a decisão mais acertada de minha vida, pois este animal foi uma peça importante, sem eu poder suspeitar, por muitos anos a seguir.

Eu cheguei humildemente debaixo de onde ele estava, com um pratinho de comida. E "ele" veio... Sempre cerimonialmente, como foi ao longo de 12 ou mais anos, sem pressa, como um rei (que descobri depois ser uma rainha).

Clarence descia vagarosamente cada degrau, cada telha e me olhava. O bicho me media dos pés à cabeça em cada vacilo, para ver se eu era confiável... Chegou nos meus pés e comeu.
 
Não parecia que estava com fome, ou se estava, tinha medo de mim, pois me fitava fixamente em cada investida na comida. Eu me agachei e coloquei a comida na mão. Ele (ela) veio lamber a comida e senti pela primeira vez a língua áspera e cortante de um gato no tato. 

Logo verifiquei que tinha que ser assim mesmo, pois estes animais, na maioria das vezes, não engolem ou abocanham a comida como os cães, e usam a língua para a higiene corporal também. Eles lambem o corpo o dia todo - lambem para limpar a língua e para limpar seus corpos e, por isso, com frequência fazem bolo de pêlo no estômago, o que é importante lembrar para quem alimenta gatos – eles precisam de alimentos gordurosos (pouca gordura) para lubrificar seus estômagos.

Quando eu quero sacanear alguém que canta mal, digo: “Esse cara canta quem nem um gato entalado com cabelo”. É horrível ver um gato olhar pra tua cara, fazer contrações, que mais parecem uma incorporação do demo, e vomitar um treco branco e cabeludo no chão... Lindo... Fagner canta assim, apesar de eu o amar...

Naquele dia Clarence dormiu no meu terraço, numa caminha de cachorro viado. Sim.... Caminha de cachorro viado são aquelas todas espumadas e redondas. Eu tinha várias - uma para um pincher maluco e outras para metade do corpo de um fila e um veimaraner.

No dia seguinte ela tinha desaparecido, talvez para cagar no jardim da escola em frente, que foi adubado por muitos anos a seguir, pois ela odiava fazer sujeira em casa... O meu jardim ficava para as cagadas de emergência. Existia sempre areia de argila para o xixi, o que ela adorava, apesar de sair sacudindo as partas com nojo... Acho até que ela era bem parecida comigo. Ela mijava, enterrava o xixi e saía fresca pra caramba - como eu em certas situações...

O terraço era aberto para a rua. A casa era grande e tinha três quintais diferentes. Portanto, ela poderia entrar e sair da casa, passear à vontade, sem entrar em seu interior e até driblar as investidas dos cães.

Gatos sobem muros como fantasmas. Ela ficava olhando pra cara dos cachorros e rindo, enquanto enfiava o rosto entre as patinhas, num muro cheio de vidros de garrafas, que nos "protegia" de ladrões... 

Era impressionante ver Clarence andar por entre os vidros dos muros, com equilíbrio perfeito, enquanto os cachorros latiam, enquanto eu implorava para que descesse, comer e dormir na caminha de cachorro viado...

Como eu não tinha muito tempo, desistia e esperava que ela voltasse, imponente e miando, quase rosnando (ou ronronando, como queiram), agora exigindo comida, não mais pedindo...

Segue no próximo capítulo.

Leila Marinho Lage
Rio, 24 de Janeiro de 2008





Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 24/01/2008
Reeditado em 21/02/2009
Código do texto: T831286
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