Cartinha pra Kammar

Escrevo-lhe essa cartinha sempre esperancosa de que lhe chegue as maos, querido amigo. Tantas ja escrevi e todas devolvidas, nao sabemos porque nem eu e nem voce.

Mas nao me canso de escrever e descrever o dia da sua partida e nao desenvolvi ainda vocabulario que possa expressar a montanha de ruinas que voce deixou naquele Aeroporto, no momento da sua despedida.

Lembro-me, como se fosse agora, na vespera de sua partida, daquela pequena truck que voce fretou para carregar os restos do ouro que veio buscar aqui...... deixados na minha garagem. Na verdade nao os guardei para mim e nem para voce; coloquei tudo a minha porta numa mudanca de estacao. E pessoas de todas as nacionalidades levaram para suas casas os pertences de um pakistanes.

Seu aparelho de som, suas bicicletas, roupas, pratos e panelas, dentre outras coisas, estao agora em uso na casa daqueles que te estranharam. Seu carro, entreguei as placas e ja deve ter enferrujado, no grande lixao onde o deixei...... lembra folhas de outono caidas umas sobre as outras..... mas nao olho mais para aquele monte de metais retorcidos que me trazem saudades de voce e Embre e ainda voltam, no album de fotos da minha vida, a triste imagem dos escombros das Torres atingidas de forma barbara, como se nenhum ser humano pudesse estar por ali. Me debati em pavor e incredulidade diante daquela miseria...... voce se lembra disso, acredito que melhor que eu.

Recordo fielmente, dia a dia, os tempos que passamos juntos. Conquanto todas as diferencas em nossos costumes, habitos, e nossa fe; sobreviveu a virtude de tolerarmos uns aos outros e entre risos debochados nos respeitavamos exatamente como eramos........ sem podas, sem criticas e sem o atrevimento de querermos modificar uns aos outros.

Lembro sempre com muita emocao de um certo Natal, dos tantos que pudemos juntos comemorar, quando, embora festejassemos o nascimento do menino Jesus, visto por sua crenca e religiao de maneira diferente ao que todos aqui acreditam; Embre cantou um cantico em louvor a Alah, seu Deus, e todos, respeitosamente, ouvimos comovidos. Foi um momento de tamanha grandeza que eu acredito que tanto Jesus como o Senhor, seu pai, tenham mesmo ceiado conosco aquela noite.

Amigo, quando te vi na angustia provocada pela indecisao de ir embora ou resistir a pressao da perseguicao a gente de sua raca, somada a falta que Embre, que fora embora, lhe fazia; contigo eu estive a beira do mesmo abismo. E quando sua decisao foi tomada, eu agradeci a Deus o fim da sua tortura mas minha alma permaneceu acorrentada ao inconformismo pelo preconceito de que voce foi vitima.

Lembro tambem nossos ultimos minutos juntos, quando nao nos encaramos: meus olhos fugiam dos seus e os seus olhos dos meus; talvez eu sentisse um imenso desejo de lhe pedir perdao em nome de toda Humanidade mas, essas palavras ficaram sufocadas. Seu gesto, passando de modo terno a mao pelo meu rosto entendi como dizendo: voce nao tem culpa ! E, ao contrario de sentir qualquer alivio..... envergonhei-me.

kammar, amigo querido, nao posso poupar-lhe saber, que, apos seu embarque, dentro do meu carro naquele estacionamento, eu chorei todas as dores do mundo e, as fortes luzes dos farois dos carros que entravam e saiam, as euforias dos abracos dos que chegavam, a correria das criancas, me deram a estranha sensacao que zombavam de nos. Voltar a minha casa foi como voltar a vida e a analise da grande crueldade que pessoas fazem com pessoas.

Aquela noite nao dormi lembrando 11 de Setembro, dia fatidico para milhares de pessoas, inclusive pra mim, em eterno luto emocional e, dia da sua condenacao por um crime que nao cometeu. Sua raca, sua gente, marcada a partir dali e Embre, que nao resistiu as grandes pressoes bem como voce, amigo, que ainda tentou, mesmo amargurado, sobreviver as minas que lhe puseram no caminho.

Nao te esqueci nem esquecerei Embre, sua mulher.

Nossa convivencia, desde nossa apresentacao ate sua partida, foi pra mim grande fonte de aprendizagem.

Descobri que e possivel conviver com as diferencas, e possivel acreditar que nem todos sao iguais, e possivel uma co-existencia pacifica embora as divergencias e e, fundamental que amemos uns aos outros.

Lamento que pouquissimas sejam as pessoas que tiveram um Kammar e uma Embre cruzando seus caminhos. Especiais criaturas, divinais amigos que deixaram em minha vida ricas licoes de amor e perdao aos odios.

A Internet e o maior Canal de Comunicacao do mundo, quem sabe voce receba essa cartinha......... um dia.

Fale com Embre do meu amor por ela e receba o carinho dessa amiga saudosa.

Rosa Maria Dias

0bs: Kammar viveu em minha cidade 9 anos e foi-se embora para o Pakistao .... nunca mais nos vimos ou falamos.

jotapati
Enviado por jotapati em 18/01/2006
Código do texto: T100430