Se Eu Não Te Encontrar... 


Meu maior medo é o de não viver um grande amor, um relacionamento duradouro feliz: a vida passar e o desencontro selar a minha existência.

Tive uma educação muito rígida sem espaço para festinhas, encontros casuais, aniversários, vida social com pessoas da minha idade. Meu pai casara-se muito tarde e como temia não nos ver crescer, tentava fazer um ano valer por aqueles que julgava não lhes restar.

A adolescência solitária e distante recheada por conselhos que jamais usei durante minhas quatro décadas...
 
Aprendi me portar em sociedade, conhecer detalhes de uma cultura cosmopolita, cresci de forma tão rápida que não lembro bem o gosto da infância ou dos primeiros ecos de rebeldia.

Meu pai teve abalos pontuais de saúde em duas fases de minha vida: aos doze e aos dezesseis anos. Dessa última vez, tive de assumir a casa e responsabilidades que minha mãe delegou-me, enquanto lutava por meu pai no hospital. Minha irmã caçula estava tão assustada que se desligou completamente daquela realidade.

Era um tempo de muita angústia, pois apesar de viver cercada por amigos queridos, simplesmente não sabia como me expressar diante da ameaça de perda, do próximo golpe da vida. Sabia que precisava me salvar da loucura, da macro-renúncia, só não sabia como fazer sem culpa, sem dor. Vivia comedida, atenta a gestos mínimos, com medo que o novo amanhecer adiantasse o que já era muito frágil. E isso me esfacelava, me adoecia, me cristalizava. 

Paralelo ao curso regular, tinha aulas de idiomas, piano clássico e tênis. Aos quatorze, debatia com os amigos do meu pai sobre o Irã e o regime dos Iatolás, a fome na África, artigos da revista Newsweek enquanto lia Shakespeare, Victor Hugo, Júlio Verne.

Aos dezessete, os colegas ansiavam ingressar para a Fundação Universidade Federal do Piauí. Eu, por insistência de meu pai, passei ainda no início do terceiro ano para o processo seletivo da única faculdade particular em Teresina.

Fazer parte do grêmio, ser selecionada pela segunda vez consecutiva em programa de intercâmbio e fundar o jornal da escola me ajudavam a mascarar o pânico pelo futuro próximo. Nada sabia sobre cursos ou futura profissão, tinha apenas uma certeza: não queria enterrar o umbigo naquela existência de sustos e medos.

Levei avante o desejo de estudar fora do estado e acredito até hoje ver no rosto de meu pai a mágoa por ter me afastado dele, deliberadamente. Afinal, dos oito vestibulares que fiz só não passei para o da FUFPI. Por absoluto desespero deles, fiz prova até para o unificado da U.E.MA e fui a primeira colocada no curso de Letras com Francês.

Decidi morar em Salvador onde estou até hoje. Na minha ingenuidade, acreditava construir uma carreira brilhante apenas com talento e competência acumulados. A essa época decidi seguir a carreira jurídica.

Salvador me ensinou a ser guerreira, uma pessoa que luta todos os dias pela sobrevivência com dignidade. Comecei vivendo de mesada. Como não sei pedir dinheiro, para complementar minha renda, dava aulas particulares e num cursinho de inglês para todos os níveis. Mas não me sentia segura, não podia ainda realizar um sonho: morar sozinha. Fiz inúmeros concursos e sempre passei sem muito esforço. Passaram-se vinte e dois anos. Nos últimos treze, montei minha casa.

Hoje sou funcionária pública do Estado, numa função sem qualquer glamour, mas que me permite ter um padrão de vida bom, continuar investindo em cultura e bancar meu mais novo desafio: uma professora que pretende incutir nos alunos adolescentes um sentido estético de cultura.

Durante esse tempo, acatei os conselhos dos meus pais na íntegra. Fui sempre uma menina ajuizada. Séria por convicção, atraí poucas pessoas porque acreditei e respeitei todos os princípios dos meus parceiros e talvez por isso esteja sozinha até hoje. Quatro ao todo.

O primeiro (vamos chamá-lo de A) era uma pessoa inconformada com sua condição social e por isso mentia muito sobre quase tudo. Amei-o muito por anos a fio e acreditando que o amor construísse pontes, incentivei a voltar a estudar, libertar-se da inveja, fazer seu próprio futuro.

Acredito firmemente que a vida na Terra é um estágio para nos aprimorarmos e parte desse aprendizado é alcançado contribuindo para a nossa melhoria e daqueles que nos circundam. Ele transformou-se em um profissional muito bem sucedido, cresceu, e parte desse amor estará sempre entre nós, como resultado do que nos tornamos hoje. A me ensinou conjugar generosidade, tolerância e doação em tempos e modos diferentes.

B era um ativista político no momento em que ser PT era sinal de pouca lucidez, nenhuma sensatez. Dizia-se um pragmático, não colocaria filhos no mundo, casar só depois dos quarenta e eu acreditei. Fazia um curso de Engenharia Sanitária na UFBA há séculos e vivia infeliz. Morava com os pais mesmo depois dos vinte e cinco. Éramos amigos e tornamo-nos amantes. Não sei se chegamos a ser namorados, o fato é que durante a minha “gestão” mudou para Letras, enfrentou o pai castrador e assumiu que dormia com uma “menina que morava sozinha”. Encontrei-o ano passado e me contou que é mestrando em Comunicação Social, casado convicto e pai de um menino. Ainda não chegou aos quarenta. Filiou-se ao PSOL.

B me ensinou a grandeza do diálogo, dizia: "Se você não me disser porque está calada assim, nunca vou poder te ajudar. Não leio mentes...". Nosso relacionamento representou um período de crescimento, aperfeiçoamento intelectual e enfrentamentos para ambos. Prestamos novos vestibulares, assumimos nossa sexualidade às famílias, experenciamos uma vida a dois. Com ele, tornei-me adulta.

C queria laços mais definitivos. Tornamo-nos noivos. Ele é japonês e tem tradições mais rígidas. Queria casar e ter filhos, ligava todos os domingos, morava nos EUA. É músico, arranjador e maestro. Foi a pessoa mais presente na minha vida, cuidava de mim apesar de me tratar como igual; único a quem não convenci me bastar só.

Quando discutíamos me dizia: "Sabe porque não desisto de você: não quero você por um verão, quero para a vida toda. Quero ser a sua família". Sensível, disciplinado, responsável e me amava de verdade. Eu ainda estava apaixonada por A e declinei dele, não sem antes descobrir a delícia de ser... mulher.

Meus relacionamentos me ensinaram a revisitar fases que abortei muito cedo, me permitiram ser menina e adolescente de novo e a partir daí passar para a fase adulta de forma gradual, definitiva. Fiquei exigente com as minhas escolhas.

De lá até hoje se passaram oito anos de uma extrema solitude. Resolvi cuidar de mim. Durante esse tempo resgatei a filha passando uma temporada com meus pais. Morei com eles por cerca de cinco anos. Conclui a graduação, especialização e algumas disciplinas do mestrado. Comecei a deslanchar a nova profissão, voltei a escrever, publiquei meu primeiro livro, comprei meu carro, pensei em ter um filho... 

Tenho um apurado senso de autopreservação, sei o momento de ir à guerra e o da parada estratégica. Ser feliz é uma prioridade, mas nunca elevei à Prioridade Zero ser feliz apenas no amor. Meu espírito libertário me conduz todo o tempo a realizações profissionais, intelectuais, espirituais, artísticas. 

De volta a Salvador, em 2006, conheci outra pessoa que pensei fecharia o ciclo. Esperava um ponto final,  encontrei outra letra. Divorciado, na faixa dos quarenta, muitas cicatrizes, chegou cheio de “efes e erres”, dizendo-se mulherengo incurável, boêmio incorrigível, sincero, trabalhador, pai de filhos crescidos. Foram tantas informações que minha reação foi adiá-lo de minha vida antes que se assentasse no meu coração e não me admitisse mais sem ele.

 

Tudo aconteceu rápido e forte demais que deixou marcas ainda não fechadas. Justamente com essa figura aparentemente torta vivi as maiores alegrias da minha vida: um almoço para apresentá-lo à minha família, uma recepção com meu pai presente, sair à noite de mãos dadas pelas ruas de Salvador. Nunca disse isso a ele e talvez nem acreditasse, mas depois de tantos anos, por algumas semanas, tive meu primeiro namoradinho e foi maravilhoso!

Não creio que as mulheres ou as relações entre gêneros tenham ganhado qualidade com a liberação sexual. Eu não sou mais feliz porque decidi ter uma vida sexual antes do casamento, ao contrário, os relacionamentos ficaram mais plásticos, descomprometidos, insólitos. Ainda aceitamos a mentira como moeda de troca entre casais.

Tenho medo de viver o restante dos meus dias, toneladas de minutos, na mais profunda solidão. É devastador perceber que nada do que vivemos ou fazemos com alguém é levado em conta quando um casal declara falência. Finda a parceria, se matam todos os carinhos, experiências, marcas de solidariedade. Hoje passo os meus dias como uma religiosa recolhida ao claustro, não recebo telefonemas de aniversário ou Natal. Devo trazer comigo o espírito de uma folha seca durante o outono.

Viver só não me assusta, o que verdadeiramente me petrifica é pensar na vida a dois e não saber como agir diante dessa situação inusitada. E talvez por isso pense ser melhor o deserto que habito.

Afinal, não se sente falta do que não se conhece...

Da infância em Teresina, enquanto espectadora fiel das novelas de época globais, ainda trago o desejo descompassado pelo companheiro de toda a vida, a quizila pelo casamento como recurso último de felicidade...

Minha alma gêmea teria cometido suicídio?

Não tenho filhos ou por quem trabalhar mais ou melhor.

Meus pais moram em outro estado.

Viajo sozinha durante as férias.

Minha cadela morreu.

Minha vida segue como a letra dessa música que adoro: Não desista, por favor, não desista!

                                            
Arsenia Rodrigues
Enviado por Arsenia Rodrigues em 26/06/2008
Reeditado em 14/08/2008
Código do texto: T1053016
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