CARTA SEM ENDEREÇO

Salvador, Bahia de Todos os Santos e Demônios, sexta-feira 25/07/2008
 
Olá,
 
 
Caetano canta – isso me faz lembrar de uma carta escrita para alguém e iniciada justamente desta forma para uma pessoa qualquer – e eu lembro de você enquanto ele descreve o impacto de ver o planeta pela primeira vez, abrindo espaço para as “sacadas dos sobrados da Velha São Salvador”... É. Faz tempo que algo ficou parado no ar e nem sei se nos veremos outra vez. Então, abrindo mão da modernidade fugaz, decidi mandar-lhe esta missiva pelos Correios. Com um porém: você nunca me deu o seu endereço desde que se foi daí para outro lugar. Então, escrevo por escrever apenas.
Aqui vamos levando. Tenho dois gatos, dois filhos e um namorado. Poderia ser dois também, mas seria complicado. Os gatos - um macho e uma fêmea -, foram escolhidos entre os cinco que tinha para morar neste novo casulo ou apartamento, como queira chamar. O filho está com 14 anos, 1m70, e tem uma namorada virtual. A filha, aos 23 anos, vive com um rapaz lá na terrinha dos Velloso. Quase não nos vemos. Afinal, os filhos definitivamente não são nossos.
Passo o dia tentando escrever alguma coisa. O pânico me tirou do trabalho e me deu uma aposentadoria precoce. Não saio às ruas, exceto se for absolutamente necessário. Caso de hoje, mais uma sexta-feira, com audiência marcada para o divórcio do primeiro marido de quem me livrei – Graças a Oxalá – há exatos dez anos. Ele nunca comparece, mas eu sou obrigada a ir. A Justiça é assim: vagarosa e condescendente.
Nunca mais nos falamos. Refiro-me a nós dois. Desta vez você sumiu mesmo. Embora isto me incomode, não reclamo a tua ausência porque não seria justo. Tomamos rumos e barcos diferentes. Gostaria, contudo, de dizer que te amo a cada segundo do dia. Se isto importa? Pouco me interessa. Apenas confidencio ao papel sentimentos que ficarão colados nele e nunca passarão pelos teus olhos de agora.
Os gatos miam num pedido insistente de dengo. Na Bahia todos são muito dengosos. Vivo na terra dos cafunés. Por falar nisso, não pensei mais no meu segundo ex-marido. Decidi tira-lo da cena. Ele adorava um cafuné. Não, não é lembrança. Apenas um exemplo. Prefiro guardar no ouvido e nos olhos o seu pedido de “pega eu”. Tão lindo. Aliás, você sempre foi uma criança meio perdida no seio familiar. Éramos ovelhas desgarradas e negras. Isto, não se engane, permanecerá assim por mais normais que sejam as nossas vidas. E este “pega eu” soou com eco de carinho num mar de solidão.
Bem, encerro aqui esta cartinha na vaga esperança de que você – mesmo sem ler – receba pelos nossos canais telepáticos um pouco da réstia de saudade estendida por este dia. E possa, de longe, ouvir os pássaros daqui e sentir as asas apressadas dos beija-flores a tomar a água açucara da janela de todos os dias.
 
Sem mais nada a dizer as 12:25, encerro a escrita e me encerro por aqui. Mando beijos para você, extensivos a mais ninguém.
 
Iza.
 
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 25/07/2008
Código do texto: T1097533
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