CARTA AO FILHO QUE NÃO TIVE

Salvador, 2 de agosto de 2008

Olá,

Não tivemos a oportunidade de manter contato. Não sei qual seria seu sexo, muito menos por qual nome te chamaria. Mas não te esqueci desde aquele dia em 2001 quando o homem que seria seu pai adentrou o quarto e me forçou a tomar nove comprimidos. Um a cada hora, sendo o décimo introduzido no canal vaginal. Não tive nem tempo para dizer não. Estava deprimida demais e me sentido tão rejeitada quanto você. Além disso, não queria ter o terceiro filho sem um pai de verdade. Claro, fui fraca. Eu sei. As dores, no entanto, foram extremadas e ele, o homem que te queria morto (a) ficou ali, no chão, ao meu lado, tentando me consolar.

Não demorou muito para te expelir. Você estava em mim há, no máximo, quatro semanas. O sangue jorrou impiedoso. Você deve ter saído rápido, mas a sangria se prolongou. Ele, o homem que te quis morto (a) esboçou preocupação e ligou para um médico da família, que nunca esteve de acordo com tal atitude. Ele prescreveu um comprimido pequenino – devia ser do seu tamanho – com o propósito de parar o sangramento. No dia seguinte, o tal homem me levou ao médico e, obviamente, não disse o que havíamos feito.

Fui submetida a uma endovaginal. A médica, estúpida, colocou o aparelho dentro de mim sem a menor pena e constatou que não havia gravidez alguma, nunca houvera. O homem que seria seu pai comemorou o serviço bem feito e fomos até um bar para entornar as malditas cervejas de todos os dias em que estivemos juntos. Não havia nada em mim que expressasse alegria, mas o homem só pensava nele próprio, na vontade dele prevalecida.

Você foi abortado (a) em março ou abril de 2001 e, naquele mesmo ano, cansada de ouvir daquele homem que ele estava no lugar errado e nossa relação não tinha chance de dar certo, arranjei a passagem e o mandei embora para a Cidade Luz. Coloquei tudo dele nas malas e houve até um excesso de bagagem no valor de R$ 60. Fui com os primos dele e um amigo meu até o aeroporto, mas desta vez não o acompanhei até o portão de embarque nem fiz papel de idiota indo até a parte de cima para ver o avião sair do solo e ganhar o céu.

Fiquei por lá até umas 5 horas e depois eu e meu amigo tomamos um táxi. Eu fiquei no meu subsolo sozinha e ele seguiu para casa. Não tive vontade de chorar. Dormi umas duas horas, até ouvir a chave na porta. Era a minha amiga e “serviçal” ou “escrava” como a chamava de brincadeira.

Levantei e tomamos café juntas. Conversamos longamente e falamos sobre você, que deveria estar engatinhando ou andando pela casa, não tivesse aquele homem decidido se você tinha ou não o direito de existir. Depois de 15 dias, o tal homem já estava de volta e, por e-mail, havia tecido uma série de promessas. Sou culpada, eu sei. Afinal, permiti e até quis tê-lo de volta. Nosso romance durou até abril de 2006.

Quando o coloquei para fora de casa, você estaria com seis anos, indo à escola e perguntando o porquê de todas as coisas. Depois do seu aborto, ele foi ao médico e fez uma vasectomia. Evitaria, assim, que pudéssemos reviver a situação. Não engravidei mais. Já tive alguma esperança, mas agora não vislumbro esta possibilidade. Continuo deprimida e com uma sensação enorme de abandono. Mas, desta vez, caso acontecesse, haveria um pai cheio de amor para receber o filho (a)... Mas e você?

Estou escrevendo para te pedir desculpa. Estava cheia de medo e isto não mudou muito. Talvez nem tivesse sido uma boa mãe para você. Nunca saberemos não é mesmo? Desculpa ter te jogado pelo vaso. Não tive coragem de dar descarga nenhuma das vezes em que fui ao banheiro naquele fatídico dia. Também não enxuguei o sangue que ficou pela casa. Naquele dia, o homem fez tudo por mim. Até te matar!

Sua mãe...
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 02/08/2008
Código do texto: T1110107
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