carta III - do desejo

Hoje, desde bem cedinho, acordei querendo te dizer o que há num suspiro que o faz tão doce. Descobri que o segredo é o desejo. Mas, ele tem hora marcada, vem e vai embora, some por dias, depois volta.

Penso que o desejo é o ínfimo laço que une as pessoas por tempo indeterminado, sem conceitos de findável ou eterno. Desejo é post mortem, vai além da mistificação da alma. Contraditório, eu sei.

O desejo que te descrevo ultrapassa a padronização dos perfis humanos, mas se fixa no surgimento inesperado e sem explicações aparentes. O desejo não se explica. Então, por que ouso? Talvez, para atazanar um pouco sua vida ou a minha, quem sabe.

Te desejo hoje, precisamente agora, em cadeia de aminoácidos: peptídica e hormonal. É como sentir sede e beber a água em curtos goles, só pelo prazer de matar o saciável. Mas, meu desejo é suplantável, persiste cá dentro como uma velha chama – intensa – impossível de saciar.

O que eu digo tenta descrever algo impalpável; por isso soa tão difícil. O desejo é muito mais que uma mão no seio ou em meios, nessa carta. Ele é verso, toque úmido de dedos; é a nudez em suores nas bocas menores e santas. Envolve a dualidade que se encaixa num quebra-cabeça corpóreo, como a sensação de encaixar-me em ti.

Eu me encaixo em ti e fluidifico cá dentro, num estado febril de palavras que me deixa aos pulos. Pois veja, aqui o desejo é tão literário quanto literal – é pleno, mas nada conciso, porque tudo em mim é longo e intenso.

A intensidade que me cobre ultrapassa as marcas do relógio, de modo que um segundo de desejo pode ser tão extenso quanto algumas horas. Então, te digo, aproveita e vem nesse instante, pois que talvez lhe seja último.

Saiba que o último momento do desejo é sempre inesquecível e móvel, como um vai-e-vem de escuridão e claridade, calor e frio, seco e úmido. Vem... que as reticências aqui são frondosas.

Hoje, agora à tardinha, pensei em te dizer o que há num adeus que o faz tão amargo. Descobri que o segredo é o desejo. Mas, nesse caso, é que ele vai embora antes de cumprir suas responsabilidades.

Então, eu durmo novamente, com as tarefas não cumpridas, mas cheia de desejos resguardados.