Carta a Mário de Andrade, o escritor serelepe que é uma tradução de Brasil

Mário, Mário!

Por muito, mas muito tempo mesmo, você ficou esquecido entre tantos e confusos títulos na minha estante. Até que veio o baque, o estalo, o romper da casca. Mas essa é uma outra história que não convém relatar agora. E não vejo outra forma de contar da alegria do meu encontro com você do que por esta carta que não encontrará o seu destinatário. Mas isso não importa. Encontrei você dentro de um envelope em forma de livro.

Em pensar que esse envelope esteve tantas vezes em minhas mãos e sempre voltava para o fundo confuso da estante. Aliás, um envelope não, dois: no primeiro, que me atraiu mais, as suas cartas para Manuel Bandeira; no segundo, a sua correspondência para Candido Portinari, o seu pintor número um, aquele que desbancou Lasar Segall na sua preferência apaixonada.

E todos os envelopes recheados de cartas que escreveu compulsivamente. Cartas pensamenteadas de Mário de Andrade. E como escreveu cartas o grande autor de Macunaíma (livro escrito em seis dias)! Penso que seria uma delícia você vivendo nos dias de hoje, com todas as facilidades desse admirável mundo novo da tecnologia em tempos de globalização – e você que já era um cara tão antenado. Quantos livros não publicariam os amigos e os não tão amigos assim com a sua profícua e instigante correspondência? E já são tantos dando conta dos segredos de sua robusta caixa postal.

Imagino você e sua curiosidade no tempo das facilidades do e-mail. Nada mais ilustrativo do que a sua citação de Platão na abertura de A escrava que não é Isaura: “Vida que não seja consagrada a procurar não vale a pena de ser vivida”. Você e suas idéias circulando pelo mundo a um click, sem o ritual dos envelopes, do selo, do carteiro, da espera e dos extravios. A angustiante carta que corria o risco de nunca chegar ao seu destinatário...

Que beleza, Mário!

Difícil, Mário, organizar as idéias e centrar-me na objetividade do relato, tamanha a emoção que provocou em mim esse encontro com a sua intimidade sem rodeios, sem papas na língua. Você tão você, com seus erros “conscientes” e os seus erros de “ignorância”, que deixavam todos tão confusos que ninguém sabia distinguir o que era estilo ou lapsos de fazer estremecer os puristas na sepultura, principalmente os da língua. A língua que queria brasileiríssima, sem a pompa lusitana. Concordo (em parte) com você. Os nossos diminutivos são mesmo uma gostosura. Carneirinho, sem dúvida, é infinitamente mais bonito que carneirozinho. Depois de você me sinto livre para nadar em riachinho. E achando lindo!

E no aguaceiro marioandradiano de suas cartas um legado precioso de memória que ultrapassa em muitas léguas o homem Mário de Andrade, porque sua intimidade pensamenteada tem a profundidade de Brasil. E você melhor do que ninguém a refletiu, de forma viva e cristalina, em sua obra literária, em sua obra de homem público, incentivador da cultura, pesquisador criterioso e incansável, um brasileiro serelepe e essencial. Um brasileiro metido até o pescoço no modernismo. E na sua intimidade pensamenteada um relicário de testemunho vivo daqueles anos fervidos da cultura nacional.

Mário, o brasileiro que não se furtou ao Brasil, que não deixou que “seqüestrassem” – palavra tão concretamente dura nos violentos dias de hoje e tão recorrente na sua fala metafórica – a sua coragem de ser Mário de Andrade, a ponto de, conscientemente, chegar a comprometer a sua obra.

Você era mesmo um sujeito cabeça-dura!

E Manuel Bandeira que nos diga de sua teimosia e obstinação e todos aqueles que foram vítimas de sua inteligência. Provocador nato, esgrimista intelectual de primeira grandeza, não arredava pé de seu orgulho duramente construído, sobretudo na convivência com a antropofagia das vaidades do seleto círculo dos modernistas.

Penso que rancores, desafetos, mágoas e algum sentimento de inadequação sempre sobram para quem não nasceu em berço de ouro e teve de palmilhar o barro da estrada do cidadão comum, mesmo sendo um sujeito ímpar. E uma frase sua revela muito dessas emaranhadas entrelinhas: “Não ando pago pelos outros. Um café que me paguem me ofende”.

Trabalhar duro, conviver com as desvantagens das diferenças e superá-las todas, e muitos dos seus contemporâneos, na capacidade de produção e na grandiosidade da obra.

Invejável, Mário, em todos os sentidos, a sua capacidade de trabalho. E principalmente a sua capacidade de escuta desse Brasil profundo, o Brasil que ficou mais transparente e carregado de identidade com a sua obra.

Um Brasil que é Mário de Andrade, um Brasil que se perde, se confunde e se contradiz, mas que emerge do fundo do poço com vitalidade titânica. Senti em tantos momentos dessa viagem pela sua intimidade pensamenteada o abatimento moral e a depressão que lhe deixavam meio cinza, meio turvo e mais convicto ainda. E muito mais cabeça-dura. É, devia ter lá as suas fórmulas para sacudir a poeira e seguir em frente.

Com certeza o trabalho e as múltiplas funções que exercia e as obrigações que se impunha eram um santo remédio para essas dores da alma. E justo você que se orgulhava de ser conhecedor de Freud e se considerava um psicólogo. E o intuitivo psicólogo Mário de Andrade deixou rastros fecundos na crítica literária e de artes plásticas.

Acredita que outro dia fiquei de queixo caído numa mega-livraria ao encontrar disponíveis na prateleira títulos de sua obra que imaginava fora de catálogo. E muitos outros referenciais. Além de ficar contente com o fato (esse Brasil ainda tem jeito!), confirmei também ali que você deve ter sido o escritor brasileiro que mais escreveu cartas. E tome cartas para ilustres conhecidos e desconhecidos.

De cara comprei um volume com três títulos, aquele que o crivo de sua autocrítica carimbou de Obra Imatura: Há uma gota de sangue em cada poema (título que me perseguiu uma adolescência inteira; achava lindo, dramático. Reminiscências das aulas de literatura...); Primeiro andar (contos) e A escrava que não é Isaura (ensaio/discurso).

Passei fácil por Há uma gota de sangue e continuo em marcha lenta nos contos, mas caminhando. E fiquei de queixo caído, mais uma vez, e surpresa com a sua esgrima. Digo mesmo, encantada desde o início com o seu jeito de atingir o nervo exposto da polêmica. Adorei a sua parábola da verdade: “Cristo dizia: Sou a verdade. E tinha razão. Digo sempre: Sou minha verdade. E tenho razão”. E, claro, mais adjetivo, encantada com a sua visão da eterna escrava, aquela que Rimbaud deixou nua com um “chute de mais de 20 anos” em sua heterogênea (eterogénea na grafia de Mário) “rouparia”. Só que as impressões da leitura ficam pra (nada mais Mário de Andrade do que um pra coloquial, livre e solto na língua escrita) depois. Mas sinto-me tocada pelo legado generoso do caminho do aprendiz Mário de Andrade, irregular e magistral, mediano e soberbo, enfim, como todo mundo, com seus altos e baixos.

Bom demais também, Mário, ver ressurgir do fundo do poço do seu tempo e pelas suas mãos conscientes a musicalidade dos brasis perdidos dos próprios brasileiros graças ao obstinado trabalho do pesquisador interessado que sempre foi e cultivou.

Bem que podia ter se acomodado, contentado com menos. Aulas no conservatório de música, críticas para jornais, cartas para os amigos, sessões de leitura de poemas, um encantamento com um pintor aqui, outro encantamento maior acolá, Lasar Segall e Candido Portinari nos extremos de sua paixão. Ah, e tinha um Manuel no meio para temperar tudo, o seu alter ego, o seu sparring, a paixão de alma, a irmandade purificada das abertas confidências e todas as inconfidências também. E os seus livros para escrever e a incansável correspondência, senhor Correios e Telégrafos!

Mas não, você era um viciado em Brasil. Mário, aquele camarada de terno e chapéu, do dinheiro curto e sempre contado, percorrendo o Brasil, recolhendo os fragmentos da musicalidade que são parte do nosso tesouro, da nossa alma no caldeirão saboroso da cultura. E tome viagens... Norte, Nordeste, esses ermos de Brasil tão diferentes, tão palpitantes, tão desencontrados de si mesmos, tão fora do eixo (São Paulo/Rio?). Paulistano que nada! Você era mesmo é do tamanho do Brasil. E que continue desvairada a Paulicéia.

Com todos os xamãs, olho para esse caldeirão no qual meteu atrevidamente a sua colher de pau e me reconheço Macunaíma. E tenho apetite voraz.

É Mário, você me deixou obsessiva. Não, palavra forte. Melhor compulsiva. Depois de devorar a sua correspondência para Manuel Bandeira (Mário de Andrade - Cartas a Manuel Bandeira, coleção Ediouro/Notas e prefácio de Manuel Bandeira), letra miudinha, espaçamento menor ainda, e a sua ortografia toda diferente e os seus brados (Eu falo brasileiro!), e do livro quase ter desmanchado na minha mão – tive que pedir a um colega da gráfica para remendá-lo –, aí é que me veio o apetite de devorá-lo inteiro.

E não posso omitir que tropecei à beça nos tais erros conscientes e de ignorância. E me deliciei com as suas gargalhadas de si mesmo ao admitir a confusão, pois nem você sabia mais o que era um e outro. Portanto, mais difícil de ler impossível, mas não consegui despregar os olhos do livro e de rabiscá-lo. E tinha a lanterninha esclarecedora de Bandeira, com suas notas, sempre apontando aqui e ali.

Creio que essa leitura sem frescura de você acordou o Macunaíma endiabrado que existia dentro de mim, cheio de disparates, ávido de tudo, sempre por caminhos tortos, como o desta escrita.

Fiquei, sim, Mário, embasbacada com você, que me acertou como uma trombada, desmantelando tudo. Por caminhos tortos, diferentes daquela trilha batida (e incompreensível) da leitura (odiada) de Macunaíma no colegial, você me chega à idade madura com um cheiro absoluto de intimidade, de verdade, a verdade do homem, as dúvidas todas, as idiossincrasias, aqueles fios do caminho do aprendiz que foi juntando para construir Mário de Andrade, o escritor serelepe, como você gostava de dizer.

Mas como eu ia tropeçando – aprendo com você que escrever é um soberbo tropeção! –, fiquei ávida de você como alguém que de repente se vê num espelho pela primeira vez. Você cutucou alguma coisa dentro de mim e cutucou com vara curta, quase que me exigindo a ousadia do ataque, a coragem da exposição, da fragmentação, da cara a tapa. É, Mário, você me espetou sem dó nem piedade. E me encheu de uns apetites diferentes, vorazes, ferozes.

E mergulhei nas linhas e entrelinhas da sua correspondência com o velho Manu, aquele que lhe agüentava com complacência de um deus indiano. E Manu agüentava e decifrava a sua tortuosa e difícil escrita e pegava você no flagra das teses mais descabidas, mas enchia de orgulho a bola da sua criação. Penso que nem Manuela (a máquina de escrever comprada a crediário e batizada para homenagear Bandeira) aliviou o suplício.

Felizmente, Mário, você encontrou em Manuel mais do que o fiel amigo confidente, um espelho que ajudou você a refletir e se refletir do modo mais transparente na moldura de um tempo eivado de futuro pelo viés da sua obra. É nesse saboroso diálogo com Manuel Bandeira que vemos Mário por inteiro e mais do que Mário um retrato amplificado de Brasil que ecoa nos tempos de hoje, vertiginosamente. Há que se agradecer por extensão a Manuel por ter deixado você inteirinho da silva, ou melhor, andradiano mesmo, com sua ortografia personalíssima. Tanto “milhor” pra gente na labuta de conhecer você.

Mário, o mais modernista dos modernistas de 1922, ainda hoje o moderníssimo Mário de Andrade, que legou ao Brasil a materialidade de sua alma, a alma musical de seu povo e de sua fala.

E a consciência é um oráculo tão obscuro, como você mesmo pontuou. Assim como você era apaixonado por sua verdade porque ela era apaixonante, talvez esta mesma paixão febril em sua vida e obra seja o que mais me toca e encanta agora. E ando em círculos com você e vou cada vez mais (pro) fundo marioandradiano, escutando a sua voz, suas dúvidas, suas tentativas, seus erros e encantando-me com o acerto final de tudo isso.

E como estou no círculo de sua escrita e o precioso envelope já se desmanchando novamente em minhas mãos, aproveito a íntegra de um pensamento seu para sair da enrascada dessa carta: “Imagino que entre a consciência e a subconsciência inda deve de ter um terreninho safado em que grandes brigas se travam. Ás vezes escuto ecos dessa briga. Porêm me aturdo com leituras e pensamentos noutras coisas...” Assim, entre outras leituras e interesses, sempre volto a Mário de Andrade.

Bem, antes que eu perca completamente a oportunidade de colocar ponto final no rumo absurdo dessa carta, nesse desgoverno de idéias e sensações, continuarei com a firme determinação marioandradiana de travar essa gloriosa batalha com a sua obra. E me divertindo muito. Talvez retome o assunto, de forma mais ordenada, em outras cartas, ao sabor de suas provocações.

Um abraço danado de afetuoso.

P.S.: Favor não devolver ao remetente.