VINTE ANOS TERRESTRES

São Paulo, 13 de janeiro de 2009

Caríssimo: venho para saudar-te, ainda hoje, há 7305 dias da primeira vez em que nos vimos e nos re-conhecemos. Ah, longinqua tarde doutro século,tarde de 13 de janeiro de 1989, na qual sem saber inaugurávamos tempo de relógios parados , realidade paralela sem parâmetros a não ser os de um ritual instituído a dois, insólito ritual a deuses dos quais até hoje ignoramos os nomes efetivos.

Inauguramos, naquela longínqua tarde terrestre, o tempo infinito e invisível para todos os demais, um tempo que foi se erguendo, sagrado, do solo denso de cada um dos nossos interditos.

Nossos interditos e interdições, presenças de sempre, a mudarem e sempre as mesmas, em cada segundo destes 7305 dias da primeira vez em que nos vimos na presente era em que nos re-conhecemos .

Um milagre que permaneçamos, depois de tanto, depois de tudo: um milagre. Quantos impérios em teu mundo e no meu mundo se ergueram e sucumbiram ao largo e ao longo deste tempo! Quantas mortes nos invadiram com suas trombetas e seus silêncios e selos! Quantas foices ceifaram nossos sonhos!Quantas viagens fizemos do nosso rosto divino aos nossos desconcertos humanos, tão demasiados desconcertos tão demasiadamente humanos! Quantas ascensões ao nosso paraíso seguidas de sucessivas e recorrentes descidas aos infernos! Lembra-te, caríssimo, do número infinito de vezes em que abrimos as janelas palpáveis das nossas casas respectivas apenas para saber se o mundo "real" ainda existia?

Venho saudar-te hoje, mais uma vez, quando completamos nosso vigésimo ano. A partir de amanhã iniciaremos a jornada do vigésimo primeiro o qual, no Tarô, equivale à carta que representa o Mundo, o início e o fechamento de ciclo: três ciclos de sete anos e não há como deixar de evocar o soneto de Camões. Ah, Jacó, Raquel e Lia! Ah, Labão, senhor de destinos!

Venho saudar-te, publicamente, nesta carta sem dizer-te o nome e sabendo-te ausente desta leitura, virtual leitura para outros que não tu, ser da minha saudade, saudade de ti quanto de mim mesma. A MESMA.

Saúdo-te a ti, ser portador do nosso mistério, ser feito de silêncio, de dor , de solidão, também extemporâneo Dom Quixote, paladino de causas que tu julgas perdidas. Saúdo-te na realidade do mistério sem deixar de saudar-te na realidade palpável que nos cabe, que nos é possível, de um possível jamais suficiente para o tudo de que necessitamos, realidade cujas fronteiras nunca nos foi dado ultrapassar para a entrada em um Outro Mundo, no Mundo Outro onde sonhamos,sempre impossivelmente, viver.

Muitas vezes penso que doaria séculos das minhas vidas futuras para poder olhar e tocar, sem testemunhas,por cinco minutos, o teu rosto. Cinco minutos sozinhos no mundo e eu teria em meu olhar e em meus dedos o completo sabor da eternidade.À falta deste tempo, sobra-me ainda o direito, diante de todos, o direito ainda hoje, após vinte anos terrestres completos, de dizer-te: sê bem-vindo sempre, meu amigo caríssimo.

Zuleika.