Os milhões de Fernandos Pessoas



          Espero cheguem a ti, ligeiras, as aflições abaixo:
          
          Dá graças à tua juventude, a partir da qual podes te corrigir ou errar menos (ou acertar mais!), conforme tua sabedoria, bom-senso e experiência.

          Tua infelicidade atual é atual, e passará; tuas faltas, nem tão graves assim, como as expões, se comporão em acertos...  Angustia-te menos.

          Sofre mas convicto de que é devido a reveses da vida, e não só a erros teus que te castigam.
          Leiamos Camões:

          Erros meus, má fortuna e amor ardente (1)
          Em minha perdição se conjuraram...

          Belíssimos versos, não?  Só que inaplicáveis a ti, pois:
a) o gênio do Poeta elevou ao máximo a transfiguração lírica do real (vale dizer, dos seus sofrimentos, comuns a todos nós);

b) O "erros meus", admita-se, depõe contra ti --- num suposto tribunal do júri espiritual; mas e a "má fortuna" e o "amor ardente", que significam o destino e os sentimentos, sobre os quais não temos poder algum?! Em que artigos de lei esse severo fórum te enquadraria? Nenhum. Pois todos nos achamos sujeitos à "má fortuna" e ao "amor ardente"...

          Minimiza pois teus sentimentos de culpa, teus remorsos, tua obrumbral noção de um "castigo justo e merecido".  Não te submetas a julgamento algum! És livre para falhar e te emendares!

          Não crês em Deus?  Ótimo!  Ou crês Nele duma forma bem especial, só tua, que exclua Céu e Inferno? Sabe então que milhões de fernandos pessoas olhamos não para um Firmamento redentor, porém para a Natureza toda, panteisticamente.  E a defendemos e protegemos e, com ela, quase dialogamos.

          Mira por outro ângulo: católicos e evangélicos se crêem ungidos, salvos, e por isso nos intimidam com penas eternas, em Seu imurmurável nome.

          ...Mas se seu deus deles é misericordioso, por que puniria os humanos que furtassem, roubassem, estuprassem, matassem?!  Esse "bom" deus, penso, não deixaria o homem pecar e se tornar indigno dos Céus e candidato favorito às Grandes Chamas, concordas?

          Então aí já se nota, jovem, a falácia dos que se proclamam Seus profetas e pecam tanto ou mais que nós e nos ameaçam ainda, desde criancinhas, nas ruas, nos lares, à mesa, nas escolas, nas praças, nas igrejas, com as sentenças clássicas:
         
 "Deus está vendo..."
          "Deus não gosta disso..."
          "Viu? Papai-do-Céu castigou..."
          "Bem que eu avisei..." etc.

          Que deus pérfido é esse deles, não?, que cria o Homem para a crueldade, as guerras, os assassinatos em massa --- e não só na "Alemanha de Hitler", como na "Roma dos Césares", no "Império Português", no "Vietname de Richard Nixon e Lyndon Johnson" (vê os filmes "Corações e Mentes" e "Platoon!"), no "Afeganistão e Iraque de George Bush"...
          Fico aí com Omar Khayyám, poeta persa:
       
Lembra-te de que tens defeitos maiores. (2)
      
          Fernando Pessoa desmascarou esse deus, de igual para igual, em vários poemas, ridicularizando-o até (que blasfêmia!).  Mostra-o como um ente comum, mera invenção atemorizante.

          Todavia se manteve ajoelhado, absorto poeticamente durante seus curtos 47 segundos, numa contrição e comunhão comoventes com o seu Deus.
Acalma-te portanto, sossega teu aflito interior riquíssimo.

          Tens acaso culpa dos infortúnios do Mundo, da eterna partida de pessoas impartíveis e das ilusões de amor que deságuam na solidão, no silêncio, nos dramáticos braços do abandono? Das inimizades aparentes ou falsos apreços?

          És nada mais que autor e réu, agressor e agredido, e muito mais inocente do que vislumbra teu inspirado espírito. Conduze teu destino sem imposições, sem onipresentes deuses ou manhosas sugestões alheias...

                                   ## @ ## @ ## @ ##

          Misteriosa, a alma.  Ao fechar este grotesco esboço, envolveu-me um sentimento luminoso, de missão cumprida, de porcentagem bem administrada, seguido de tremores e discretas lágrimas.

          O idioma grego nos legou um termo clássico para tal ocorrência, tão imortal quanto a Grécia: "catarse". Porém eu, brasileiro, simplifico: "desabafo", "alma lavada".

          Sim, porque não escrevi toda uma viagem (quase cinco horas) apenas para ti: escrevi de fato para mim, posto que iniciei a escritura para outrem.

          Enfim confesso: errei, magoei, entristeci profundamente famílias inteiras devido a atitudes inconseqüentes e imaturas, oriundas de traumas e frustrações e complexos, na juventude.

          Aos 42 anos, casei-me.  E eis o inesperado: mudei, amadureci, fiz concursos públicos, melhorei.  Bom marido, bom pai, bom genro, bom vizinho...

          Detalhe: não desposei a garota dos meus sonhos. Mas tenho esposa e filha felizes, realizando-se, progredindo, aproveitando a Cidade, seja nas caminhadas na orla, nas praias, nas reuniões, nos passeios, na contemplação do mar, dos monumentos, do multiverde e das delicadas florações.
          Há nisso tudo alguma lição para ti?

                                             AAAAA

          Quanto às editoras, ignora-as: relembra Marcel Proust, James Joyce e tantos brasileiros recusados e hoje tão disputados...

          Cuida mais (ou só) da tua obra.  Reescreve-a dez, vinte, cinquenta vezes, sempre aprimorando teus conhecimentos técnicos e teóricos sobre a Literatura e os infinitos recursos da Língua Portuguesa.  E: lê os outros, lê os outros, lê os outros.  Grandes ou pequenos.

          Falei do "teu aflito interior riquíssimo".  Falaste-me dos poemas-espinhos, que tanto te ferem quanto te e nos cativam.  Pois pelo pouco que te li, indago: onde a aflição, a alma, a riqueza?!  As letras incandescentes, puro arame farpado cercando nossas almas-de-gado, a grama e a água corrente?  A suprema angústia de Franz Kafka, Albert Camus e Fiodor Dostoiévsky, o fervor trêmulo de Euclides da Cunha, a abissalidade de João da Cruz e Sousa?  O gênio de Joaquim Machado de Assis?  Enfim, onde as miríades de composições?  Por que as tiraste do site?
(3)

          Aparta-te dos bate-papos simples, supérfluos e vazios do Mural e do Fórum, onde se perde um tempo irretornável: polemiza menos, afasta-te das amenidades tão deliciosas quanto frívolas e fugazes...  E inicia a solitária subida, que só tu podes, à poderosa, imensa, dolorosa, musical Montanha da dor original de que nos fala Rainer Maria Rilke nas "Elegias de Duíno".
          Decide teu futuro: superficialmente polêmico ou admiravelmente poético?

          Pressinto a proximidade de um grande escritor. Depende de vários fatores, como:
1) a solução de tua vida sentimental: casas-te ou não com a srta. Y?  (Se te casares, selarás o fim dos sofrimentos amorosos, da solidão, e, em conseqüência, da tua fonte atual de inspiração).

2) casas-te com outra moça e continuas te inspirando em Y; boa solução para a poesia, que ganhará em angústia e belos versos.

3) casas-te com Y e, acalmadas as paixões pela convivência diária, te dediques, com o mesmo fervor, a mesma reverência, à Arte --- a outros e igualmente belos assuntos.

          Aonde almejo chegar? - À afirmação de que não existe poesia feliz e absoluta ao mesmo tempo.  Uma Humanidade contente não faz versos: vive-os apenas.
Tem o artista de se tornar o refém voluntário da cruel Literatura e suas marcas de ferro e fogo (dramas, conflitos, delírios colossais), através de uma sempre maior dedicação ao fazer poético.

          Caso permaneças só, ou com outra te cases, Dante, Camões, Florbelinha, José Craveirinha, Cruz e Sousa e outros --- esses dulcíssimos parasitas da nossa alma tão lusa --- vão adorar:
         
 "Oba, mais um a implorar à Poesia que eternize sua amada!"

          E ei-lo perdendo razão e sonhos mas ganhando o direito de contemplar-se intimamente!  Palmas e louros!



          Notas:
(1)      
Erros meus, má fortuna, amor ardente
           em minha perdição se conjuraram;
           os erros e a fortuna sobejaram,
           que para mim bastava o amor somente.

           Tudo passei; mas tenho tão presente
           a grande dor das cousas que passaram,
          que as magoadas iras me ensinaram
          a nao querer já nunca ser contente.

          Errei todo o discurso de meus anos;
          dei causa que a Fortuna castigasse
          as minhas mal fundadas esperanças.

          De amor não vi senão breves enganos.
          Oh! quem tanto pudesse que fartasse
          este meu duro génio de vinganças!
          (Luís Vaz de Camões)

Fonte (de onde tirei o soneto acima): www.bibvirt.futuro.usp.br
(Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro).
Acesso: 01/09/2007.



(2) E a tua piedade, Alma de Areia? 

       
Considera com indulgência
       os que bebem até à embriaguez.
       Lembra-te de que tens defeitos maiores.

       Se queres conhecer a paz e a serenidade,
       pensa nos miseráveis que padecem
       os maiores infortúnios, e...
       acabarás por julgar-te feliz.
 
       (Omar Khayyam -
Rubaiyat (Quartetos)



(3)
Em comunicado de agosto de 2007, o escritor participa que foi expulso do Recanto das Letras, tendo portanto todos os textos deletados.

          Viagem Cabo Frio --- Nova Iguaçu, manhã de 11/01/2007.


          Texto modificado 123 vezes, até 16/02/2010.
Jô do Recanto das Letras
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 23/04/2009
Reeditado em 01/03/2010
Código do texto: T1555409
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