Confissões

Já faz dez anos que estou preso aqui. Em todo esse tempo, sempre na mesma época, as mesmas pessoas vêm me visitar, trazem as mesmas coisas e me falam as mesmas palavras, que, cada vez mais, procuro ignorar. Suas vidas não fazem mais parte da minha, suas histórias de nada me valem e seus sentimentos já não mais me atingem. Eu sei, pareço um insensível falando. Mas você entenderia se soubesse onde estou. Aliás, eu não desejaria que você estivesse no meu lugar. Ainda mais se você for um daqueles ditos “moderninhos”, que não pode passar um minuto sem saber qual é a festa, a cor, a banda, o boteco, a posição sexual, o museu, o blog, o vídeo, o filme ou o livro do momento. Eu vejo a mesma coisa todos os dias. Pois é, pode me chamar de Sr. Tédio, amigo. Isso mesmo, com “T” maiúsculo. Não há absolutamente nada para se fazer nesse buraco, até o tempo já desistiu de tentar passar por aqui. Ele chegou, olhou e soltou um “Hasta La vista, baby”. A única vantagem desse pequeno vácuo é que há bastante tempo para pensar. Pensar, pensar e pensar nas mais diversas bobagens, nas mais medíocres coisinhas, nas mais patéticas teses filosóficas. O problema é quando você não consegue dividir isso com ninguém. Tudo acaba se perdendo, evaporando nos compartimentos da sua mente.

Você deve estar se perguntando em que diabos de lugar estou. Não, cara, não estou numa prisão, trancafiado numa cela de segurança máxima. Nunca matei, nunca roubei doce de criança e nunca assaltei velhinhas inocentes com um táxi roubado. Também não estou preso numa cama de hospital, com alguma doença que me impossibilite de andar, falar ou comer. A única vez em que estive num hospital foi quando sofri meu acidente. E desse eu não gosto nem de lembrar. Nem que eu quisesse poderia contar algo. Só me recordo de um carro vermelho invadindo a minha pista e, BUM, tudo se transformou num emaranhado de sons, cores e cheiros. Fiquei em coma por oito semanas. O que foi uma puta sorte, já que me contaram que o meu rosto estava cheio de hematomas. Imagina acordar, se olhar no espelho e não reconhecer o cara que está ali? Não, não, não. Eu sou vaidoso, amigo. Pode me roubar tudo, menos a minha beleza.

Fico me perguntando se você já se encheu de ficar lendo isso aqui. Sinceramente, eu já teria dito um grande e sonoro “foda-se”, arredado a cadeira e saído para fazer algo melhor. Na maioria das vezes nem eu me agüento. E olha que eu me amo, viu? Muito. Mas o fato é que não tenho opções. Todas as minhas fichas já foram para a mesa, a roleta já girou e, porra, meu número não foi o sorteado. Pois é, nunca tive muita sorte nesses jogos de azar. Irônico, não? Mais irônico mesmo só o meu destino. Eu, o Sr. Tédio, que sempre tive todos os holofotes em mim, que sempre estive no meio da roda mais animada da festa, que sempre consegui tudo que queria, desde o sofá com estampa da Marilyn Monroe até o loiro alto e misterioso que todos achavam inacessível. Eu era o cara. E veja só agora, contando a minha vida sem que você sequer me peça “por favor”. Nem bebida você vai me pagar. E nem pra cama eu quero ir com você. Cara, sei que te mandei procurar algo melhor pra fazer, mas é pura besteira. Eu só não estou acostumado a mendigar por atenção. Sim, puro charminho de homem carente. Não vai embora não.

Eu odeio ficar aqui sozinho, eu e meus pensamentos. Eles não merecem tinta e papel. Eles me sugam por completo, me tragam para dentro de mim mesmo e a visão de lá nunca é boa. Aquele “eu” me assusta, me maltrata, me cospe na cara e fala “você é essa imundice aí, sem creminho pra rugas, sem cabelo bonitinho, sem roupas descoladas, sem piedade de terceiros, sem visão de conto de fadas, boy”. Sabe o rosto desfigurado? É o de menos. Eu nunca escreveria nada disso que estou pensando agora. É real demais, cru demais. Logo, logo tudo vai se misturar com a terra, vai sumir, se perder num ciclo insano que não pára nunca. E você não me entenderia de qualquer forma. Os vivos nunca entendem. Porque aqui onde estou, cara, a sete palmos do chão, ninguém te leva a sério. É por isso que não vale a pena escrever. Ninguém leria o que um cadáver tem a dizer quando tem vida correndo pelas veias.