CARTA A MARA

Nunca rompi amizade com ninguém. À exceção de uma vez. Há muitos e  muitos anos, quando ainda fazia a faculdade de Letras.

Hoje, refletindo nos arroubos cheios de caprichos da juventude, me arrependo, querida Mara. Porque é preciso que atinjamos a idade na qual, estranhamente, e sob as vergastadas impiedosas da vida, finalmente aprendemos que somos, agora, e após esta sova, muito mais tolerantes e compreensivos do que na época em que, então mais novas, embora mais inexperientes, justo por ausência do volume de stress que fatalmente viria depois com as vivências teríamos tudo para ser mais tolerantes!

Mas não éramos. Jovens, somos muita vez arrebatados, impulsivos... ou negligentes para com o que de fato conta. Foi por isto, querida amiga, que, sob esta ótica desvirtuada e imatura, e mesmo de índole pacificadora desde que me conheço por gente, naquele dia em particular promovi, provavelmente, um dos dois ou três únicos episódios nos quais perdi a linha com alguém.

Como era tola!

Você se lembra? Está certo que talvez o momento o justificasse, em parte, segundo o meu entendimento e o de mamãe, que de fato ficou furiosa quando você, tendo combinado de me encontrar na Praça Saens Pena, no Rio de Janeiro, num sábado às sete da manhã, para irmos a praia, achou de telefonar quando eu lá já estava há um bom tempo, de pé como uma coluna do templo (ah, deixa eu ir um pouco pelo Caminho das Índias!), esperando, em meio ao deserto algo enervante dos pombos e dos moradores de rua... para nada...

Porque você furou, minha amiga, e não apareceu; e, como não houvesse naquele tempo, e ainda, os utilíssimos celulares, e como também se não bastasse, você telefonou para a minha casa, arrancando minha mãe do seu sono, para dar-lhe a notícia feliz: 

" A senhora me desculpe, mas não posso ir! A chave da porta está trancada no quarto onde minha mãe dorme e não quero acordá-la!...

Só que você acordou a minha mãequerida Mara! Que ficou uma arara! E, tão logo afinal telefonei para casa de um fone público, desconfiando intuitivamente que você de fato tinha furado o compromisso e talvez me telefonado, foi ela quem me cobriu de razão quando, furiosa, retornei disposta a lhe dizer poucas e boas, via outro telefonema que lhe daria em seguida, desfechando, como fiz, enfática:

"Mas pelo amor de Deus, Mara, você não podia acordar a sua mãe apenas para pegar a chave e sair?! Alegasse que eu estava já lá, na rua, lhe esperando feito uma idiota! Além do que, você não acordou a sua mãe  mas tirou da cama a minha!

Ao que você, afinal se dando conta do meu grau imenso de descontentamento, desconhecido até então nas minhas reações anteriores quanto a outras esquisitices suas, e assustando-se até certo ponto, me perguntou, a surpresa estampada nítida no seu tom de voz do outro lado da linha - eu bem o percebi:

"Nossa! Mas vou perder a amiga por isso?!"

Ao que respondi, taxativa, sem pensar duas vezes:

"Vai me desculpar, mas vai!..."

E desliguei o telefone.

Ah, Deus! Os anos passam, o tempo apaga todas os nossos arroubos de audácia inúteis... E hoje, passados mais de vinte anos, e me lembrando de você, me pergunto: para quê?!...

De que me serviu descartar a amizade da minha amiga de Brasília, a melhor que eu tinha naqueles tempos açucarados de faculdade, de estudos, de doces e inofensivas preocupações com créditos em provas, passeatas, praias, namorados e cinemas?

De que me adiantou ser tão dura e intransigente, se, rompendo contigo a amizade, o tiro foi desfechado também no meu pé, e fiquei eu desprovida dos momentos muito melhores que usufruíamos conversando sobre a nossa querida Doutrina Espírita, e contando piadas das quais, parecidas em índole, chorávamos de rir?!

As crianças sabem mais das coisas, hoje eu sei. De algum modo, e de dentro da inocência de suas vivências ainda e somente espontâneas, sabem fazer as pazes e esquecer. Lembro-me de episódios assim, na minha infância, de perdoar fácil e ser perdoada fácil, e estar novamente brincando, rindo, feliz, nos minutos ou nos dias seguintes.
 
Crianças ganham com isso. E quem perde somos nós, os adultos, com todo o nosso ranço, nossa falsa sapiência, nossas grandes razões e vaidades...

Porque, descartando a sua amizade, querida Mara, jogava fora também, ali, naquele gesto saturado de ressentimentos e de impaciência, a melhor amiga da faculdade, que me presenteara com o meu primeiro livro de J. W. Rochester, de quem também você era leitora assídua. Os anos se passaram, minha amiga, e ainda o retenho comigo, em meio a toda a coleção do autor, com a dedicatória lembrando que foste justo tu quem me introduzira a este escritor inigualável, com quem detenho a certeza de guardar profundo vínculo espiritual, tamanha e fulminante é a empatia com o conteúdo de suas obras, até aos dias de hoje!

Jogando fora a tua amizade, joguei todas as possibilidades de novas saídas, de novas piadas; novas risadagens, trocas e enriquecimento mútuo no aprendizado de uma convivência sincera com aqueles poucos com quem somos de fato afins...

Todas as perspectivas coloridas: o passar dos anos, a celebração mútua da nossa formatura, o comparecimento nos respectivos casamentos e nascimentos de filhos...

Afinal, morávamos no mesmo belo bairro do Rio, onde resido até hoje! E aquela amizade... ah, querida! Era promissora! Era sim! Daquelas que certamente detêm grande chance de vencer a passagem dos anos para nos brindar com as visitas para o chá das cinco, na idade provecta, quando comentaríamos estudos, sofrimentos, alegrias, conquistas e decepções, filhos e netos, tempestades e bonanças!...

Tudo baldado, com um reles e patético bater de telefone num momento de raiva louca!
 
Mas, como nesta vida nunca devemos considerar tarde demais a chance de nos redimirmos e de se resgatar o mal feito, deixa-me, por minha vez, e com a defasagem de todos estes anos, ao menos tentar... Por mais que a possibilidade maior e mais provável, a esta altura, seja a de que jamais você me leia! Ou de que, se lesse, também nada mais lhe dissesse o conteúdo desta carta. Ou o meu pedido de desculpas!

As energias entrecruzam o universo instantaneamente, atingindo os alvos do nosso afeto sincero, Mara! Então, com base e convicção disso, permita-me dizer-lhe - pensando melhor, mesmo após mais de vinte anos, e respondendo mais adequadamente, embora de forma tardia, aquela sua antiga pergunta:

-  "Vou perder a amiga por isso?"...

- "Não perdeu, não! Aborreci-me na hora, é certo... Mas o que ficou foram as boas lembranças, querida Mara! A afeição; o carinho; a empatia!"

Não; você não perdeu a amiga! Por algumas horas, talvez; enquanto a raiva idiota e infante durou... como acontece com as crianças... Todavia, e como acontece com as crianças, embora de inicio não admitisse, de certa altura em diante confesso que nada daquele assomo imaturo restou. O que restou foi o melhor: a amizade!

Você não perdeu a amiga!

Que, onde você hoje estiver, esteja bem! E que a minha amizade, gratidão e estima, de alguma forma te alcancem e envolvam, amiga Mara!

E, mesmo que, ao contrário, a minha atitude só lhe evoque, eventualmente a meu respeito, recordações tristes e negativas, endereço-lhe compreensão. Endereço-lhe paz.

Que Jesus seja em todos os seus dias!

Amiga!
Christina Nunes
Enviado por Christina Nunes em 17/09/2009
Reeditado em 17/09/2009
Código do texto: T1816334
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