Inda te lembro amanhã

Estás à beira de já ser mãe e essa volta que sempre retoma e sempre me engasga numa saliva que não é minha de todo, é um misto de salivas que se juntaram com o passar dos anos. E essa mistura que me atordoa, diluída neste sauvignon, e me arremete a elucubrações físicas, químicas, filosóficas, metafísicas.

Assim, estás prestes a tornar-te - por que não? - matrona, agora já mulher, outrora menina, “a mesma menina que o sono inocente acalentou feito pajem naquele cenário encantado...”.

Estás a ponto de enlouquecer de ansiedade, à espera de presente benfazejo, que te venha inundar os dias de sorrisos, gargalhadas, que venha preencher as horas vazias de um nada-fazer reconfortante e livre de culpas, porque pleno de razões.

Ao cabo de poucas semanas, serás tudo que jamais atinaste, talvez nem sonhaste, mas serás tudo que te nasceu já impresso na sina, serás o milagre que se renova pelos séculos e séculos, o mistério que desafia sem fim a ciência, a alegria que preenche enfim os desvalidos de esperança.

E os anos que se aproximam prorromperão com tanta fúria que estarás em breve me perguntando quando mesmo te falei deles, e estarás prazenteira de olhar para trás e ver os passinhos na areia se avolumando até então, e os pezinhos igualando-se aos teus, feito duas meninas, duas mocinhas, mulheres... Então estarás de par com tua maior obra, estarás a dar conselhos, como abrandar as cólicas mensais, desvencilhar-se dos cafajestes, fugir às armadilhas dos desejos de mulher; como encantar e não se iludir, talvez seduzir e, se possível, ser feliz.

Mas, depois de tudo, de toda a jornada, já refeita dos anos maternais, e ainda mãe, serás sempre um bebê, um bebezinho. Estarás ainda posando de lápis na boca, de língua de fora aos banhos de mangueira, com os biquínis de bolinhas, as sainhas curtas, as boquinhas de cereja, uva e morango... Estarás ainda, e sempre, menina. E menina ainda te terei na lembrança, no corpo, nos sonhos, inda que os anos não cessem de marchar, que meu vigor esmoreça, que minhas memórias se embriaguem de si, que até o desejo da vida se despeça. Serás menina, para mim, até o suspiro derradeiro.

Éder de Araújo
Enviado por Éder de Araújo em 16/02/2010
Reeditado em 14/04/2011
Código do texto: T2089159
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