tu, solidão (1)

Hoje és companhia, mas sabes também como ser cruel. E a maior crueldade é quando me acordas, arrepiado de medo, acariciando-me o corpo com unhas afiadas. É de noite, quando me sufocas e obrigas a iluminar o quarto para confirmar que continuas a única presença. É quando me segues pela casa e engoles o som dos meus passos, do ranger das portas e dos interruptores que acendo e apago à minha passagem. O teu silêncio. A maior crueldade é o teu silêncio. Manténs-te secreta, caminhas num total mutismo e, como a sombra, a tua aparição é sempre silente, sempre taciturna. A tua aparição, o teu espectro e o teu silêncio. Torturantes e sanguinários. Sentir-te roubar o som de todas as vozes, é odiar todas as palavras que te definem. Saber que afogas o murmúrio de um beijo e, como a noite, o cantar de todos os pássaros, é odiar todas as palavras que te definem. Ou talvez o teu peso. Talvez a maior crueldade seja o teu peso e a forma como esmagas o meu corpo. A forma como reduzes as dimensões do meu corpo. O meu crânio a poucos centímetros dos meus pés. Por causa do teu peso, o meu crânio sobre os meus pés. O teu peso é cruel. Sanguinolento. Também o teu frio. Esse que gela as noites. Esse que sempre gelou o Verão. O gelo no teu corpo é a mais bárbara das tuas formas. Mesmo quando sangrenta, nem a morte é tão tirana.

(continua)

Luís Abreu

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Luís Abreu
Enviado por Luís Abreu em 17/08/2006
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