CARTA ABERTA AO MEU FILHO

GERALDO ALVERGA

Mais um 25 de março e as recordações me vêm todas de uma vez! E o sofrimento se acumula, se arraiga no coração e nada o faz desgarrar-se e aplacar a dor. Já faz tanto tempo! Ou não? O que são vinte e quatro anos quando apenas uma eternidade nos separa?

Durante dez anos fui diariamente ao Cemitério. Sentava num túmulo frio, numa laje sem calor e lhe contava o que acontecia no mundo. Se estava muito abalada com algum acontecimento, sentia-me confortada com o seu silêncio.

Tudo quanto me contassem de você, eu acreditava. Você era inteligente, criativo, eclético. Estudava, brincava, cantava, escrevia poesia, dançava, assistia à TV, jogava bola, tudo ao mesmo tempo. Às vezes eu dizia: fica quieto, menino, só um minutinho, sem sequer imaginar que um dia você iria ficar quieto para sempre!

No Colégio onde estudava – e onde deu tanto trabalho -, fundou um jornalzinho,"A Toca do Poeta" mas, por alguma razão não pode continuá-lo e decidi ajudá-lo e o seu jornal existe até hoje, vinte e quatro anos depois. E quer saber? O Brasil inteiro o conhece e alguns outros países, como os Estados Unidos, Portugal, França, Espanha, Bósnia, Japão, China, Alemanha, Grécia. Nenhum de nós dois esperava por isso, não é mesmo? E já estamos no número 200!

Certa vez você me pediu para levá-lo à Escola e eu respondi que a escola ficava só a alguns metros de casa e não fazia sentido ir levá-lo. Você já tinha dez anos, estava bem crescidinho para precisar da minha companhia para ir à Escola e aí você me contou que

brigara com Mago, um menino duas vezes maior do que você e ele havia dito que o pegaria no caminho da Escola. Ora, não seja tolo, eu lhe disse. Vá com Jesus.

Você saiu, mas voltou pouco tempo depois e me disse: Mãe, eu vou com Jesus, Mago aparece, Jesus dá no pé e eu me lasco. Não pensei duas vezes. Levantei-me e fui levá-lo à Escola. Mago, felizmente, não apareceu.

Um dia, morreu um vizinho nosso. À noite, saí para trabalhar e quando voltei havia gente na calçada, mais precisamente na porta da casa da minha amiga que havia perdido o marido e todo mundo reclamava de alguma coisa ou de alguém e me acerquei para me inteirar do ocorrido.

Não sei bem, me diziam, mas parece que alguém pregou um susto à pobrezinha e ela quase morre.

Eu nada disse, mas desconfiei de quem era a autoria e perguntei:

- Você sabe alguma coisa sobre isso?

- Olhe, mãe, ela estava tão triste que resolvi alegrá-la. Cobri-me com um lençol, subi pé ante pé a escadaria, agarrei-a pela cintura e gritei: Voltei, Terezinha. Ah, mãe, pra quê! Ela gritou tanto que a rua se encheu de gente, mas a essa altura eu já estava em casa. Deixei-o de castigo por uma semana.

Tudo no mundo a gente diz: “Morri”, “morro”... Na verdade a gente nem sabe o que significa. Só quem morre são os outros, a gente vai viver eternamente. É o que se pensa..

No Colégio onde estudava – e onde deu tanto trabalho -, fundou um jornalzinho, mas, por alguma razão não pode continuá-lo e decidi ajudá-lo e o seu jornal existe até hoje, vinte e quatro anos depois. E quer saber? O Brasil inteiro o conhece e alguns outros países, como os Estados Unidos, Portugal, França, Espanha, Bósnia, Japão, China. Nenhum de nós dois esperava por isso, não é mesmo? Mudei apenas o nome. Hoje é "A Toca do (meu) Poeta".

- Quantas vezes fui chamada ao Colégio? Você chegava em casa dizia: Fui suspenso. De novo? O que foi desta vez? E você contava. Na maioria das vezes, não tinha razão, mas, algumas vezes, quem não tinha razão era o Colégio.(Tanto, que certa vez, uma Freira lhe escreveu pedindo perdão pelas injustiças que cometera com você) .

Dez em comportamento, você nunca tirou, mas era inteligente e aprendia com rapidez. Muito estudioso não era, isso é verdade, mas, s.m.j., não era motivo para perseguição por parte de alguns professores, dos quais eu guardo mágoa até hoje.

Outra vez, você chegou em casa, com a estória tão minha conhecida: estou suspenso. Meu Deus do Céu, o que foi agora? E você:

- Foi uma brincadeira. As meninas estavam fazendo ginástica e eu joguei uma cobra de brinquedo e ainda tem menina correndo...

Você não tinha razão e além de acatar a suspensão, ainda apliquei-lhe um castigo em casa.

Às vezes você me dizia: A senhora me defende na rua, mas me castiga em casa. Era isso mesmo, eu lhe aplaudia quando você acertava, mas punia-o quando merecia. É assim o amor.

Quando você completou treze anos, junto com o seu presente eu lhe escrevi uma carta e você me respondeu. Mantivemos essa correspondência por três anos, mas muito antes disso eu já lhe escrevia e a primeira vez você tinha quatro anos. Eu lhe dei um velocípede de

presente e lhe falei sobre os perigos das estradas, chamando-lhe a atenção sobre direção perigosa, sinais de trânsito, essas coisas.Essa carta fazia parte do Diário que mantive durante toda a sua vida.

Aos três anos de idade você foi para a Escola. Já sabia ler e escrevia umas coisinhas, porque em casa estudávamos juntos, mas, por mais que eu lhe dissesse que na Escola era para ficar sentadinho, você não conseguia e logo cedo começaram os enredos e um dia você chegou em casa chorando e me contou que ficou de castigo, sem lanchar, porque não conseguia ficar quietinho como a Professora queria. Não gostei. Como é que se podia castigar um cristão com três anos de idade, privando-o do lanche? Você nem tomava café em casa, pelo simples prazer de lanchar na escola. Que ficasse sem recreio, vá lá que seja, mas sem lanchar?

Aproveitando a oportunidade eu lhe falei sobre a vida, dizendo-lhe que o mundo está cheio de injustiças e a gente tem que aprender a conviver com o bem e o mal. As pessoas lutam para conquistar um lugar ao sol, sem se preocupar com a esteira de lágrimas que espalham ao seu redor. Você é muito novinho e ainda não compreende o mundo em que vive, mas aqui vai um conselho: Não chore por besteira. Uma professora incompreensível não merece as suas lágrimas. Você é feliz porque eu o amo. Você é feliz porque mesmo tendo nascido numa família pobre, nunca lhe faltou o que comer. Pense, meu filho, naquelas crianças que não têm pão para saciar-lhe a fome. Não têm um teto para lhes abrigar da chuva e do sol. Não têm um cobertor para lhe agasalhar o corpo, uma mãe para lhes contar histórias e lhe acalentar o sono. Não têm uma professora, mesmo injusta, porque não podem pagar um Colégio. Veja, meu filho, como você é feliz. Por que chorar? Nunca mais quero ver lágrimas nos seus olhos.

Aos dois anos de idade você arranjou um amigo e me deixou muito assustada porque só você o via. Ele se chamava Jocombo. Que nome esquisito! Ele passou a viver conosco e nos acompanhava a todos os lugares. Um dia Jocombo caiu e quebrou o braço. Deus sabe como foi difícil engessar o braço de alguém que só existia na sua imaginação, mas eu o fiz.

Você estava com quatro anos e fomos à rua fazer compras e um garotinho pediu-me uma esmola, mas eu estava apressada e continuei o meu caminho, mas você me puxou pela mão e me pediu dinheiro emprestado para dar ao menino e me pagaria com o dinheiro do seu cofre. E em casa eu lhe disse:

- Sabe, meu filho, fiquei feliz com a sua ação, preocupado com a miséria humana. Você há de encontrar pela vida afora muitos meninos como aquele, vivendo de migalhas. Migalhas de pão, migalhas de carinho, migalhas de amor. Nunca desperdice a oportunidade de fazer o bem. “Quem dá aos pobres empresta a Deus” e quando Ele nos devolve é sempre com acréscimo. Divida o seu pão e nunca faltará comida na sua mesa. Quem sabe aquele menino tem um pai desempregado, uma mãe doente! Qual será o seu futuro? Dificilmente será um doutor. A sociedade que o marginaliza, transformá-lo-á, com certeza, num delinqüente e, a tudo indiferente, seguirá o seu caminho, como se não fosse responsável pelas misérias humanas.

De repente comecei a chamá-lo de Zezé, por causa do “Meu Pé de Laranja Lima”, o livro de José Mauro Vasconcelos. Só não lhe falei do Mangaratiba, o trem assassino, que matando Manuel Valadares, matou o coração de Zezé e a sua infância.

Certa vez levei-o ao Cemitério, no Dia de Finados. Triste lei, até os mortos têm o seu dia e eu lhe disse:

- Sabe, meu filho, aqui é a Mansão dos Mortos, para onde todos iremos um dia, em busca de outras plagas. É um lugar de respeito. Não o profane com o riso dos que não compreendem a grandeza de Deus. Aqui se dorme o sono dos escolhidos, não há distinção de cor, de credo ou de partido político. Aqui repousarão o doutor e o carpinteiro, o pobre, o rico, o ladrão e o assassino, o plebeu e o nobre. São todos iguais perante Deus e serão julgados no mesmo Tribunal. Não sabemos o que nos espera no outro lado, mas supomos que na morada de Deus só há paz e amor e estaremos livres da maldade do mundo, da calúnia, da maledicência, da inveja. Na esperança de uma vida eterna, há a certeza da ressurreição.

Quando completou cinco anos, levei-o à Cadeia Pública. É que eu havia dado um curso de Relações Humanas para os presidiários e no encerramento organizei uma festinha com bolo confeitado, salgadinhos e refrigerantes e consegui permissão para que os presos ficassem no pátio da prisão.

Você, na sua precocidade, quis saber por que aqueles homens estavam presos e eu lhe disse que mereciam toda a nossa compaixão, mas eram ladrões e assassinos que a sociedade puniu, privando-os da liberdade. Expliquei-lhe que não nasceram maus, foi a própria sociedade que os induziu a isso. Ninguém nasce predestinado a ser bom ou ruim. Às vezes é a fome, um pedaço de pão que lhe é negado por essa mesma sociedade que se arvora em Juiz. Um dia você vai ler “Os Miseráveis” de Victor Hugo e vai compreender melhor o que estou tentando lhe dizer. Na verdade, somos todos responsáveis pelos “ João Valjean “ que criamos, mas o que acontece é que cruzamos os braços e alegamos que não é da nossa conta.

O tempo passou, meu filho. Aos 16 anos, nada havia mudado. O nosso amor era o mesmo e você foi um adolescente igual a todos os outros, a diferença é que você tinha fome e sede de saber e com tão tenra idade publicou o seu primeiro livro de poemas “Algemas” e preparou mais dois para serem editados “Tortura” e “Olhos Vendados” e eu vivia nas nuvens achando que o mundo era só meu. Como você não teve tempo de publicá-los eu o fiz posteriormente (In memorian). Diziam os gregos que quando se amava muito um ser humano, os deuses ciumentos arrebatavam o objeto desse amor e o levavam para o Olimpo. Pois é, isso também aconteceu comigo porque eu amei você acima da razão e, desde então o meu sonho tornou-se um

PESADELO

Estavas no caixão sereno e lindo

Aureolada a fronte, o olhar incerto

Estranho leito de flores coberto

Mais parecias um anjo dormindo.

Fiquei ali o teu sono a embalar

Naquele doce “dorme-dorme, filhinho”

Eu cantava pra você, Geraldinho

Uma doce canção de ninar.

De repente, a dor, a saudade, a revolta

Esqueci a canção de ninar

Cantei o amor, esqueci de rezar

E fiquei a esperar tua volta

E me lembrei do porquê da revolta

Da minha dor e também da saudade

É que estando na eternidade

Nem mesmo Deus pode me dar você de volta.

MARISA ALVERGA CABRAL

MARISA ALVERGA
Enviado por MARISA ALVERGA em 25/08/2006
Código do texto: T224671