CARTA A UMA MULHER

Esta noite a passei em claro, quase toda, a chorar e a pensar em ti, com a intensidade e o desespero de quem pensa em uma amante perdida, em uma amada que se perdeu.

No entanto, não és e nunca foste uma mulher do meu amor, nem do meu desejo que, meu desejo e minha paixão sempre os reservei para os homens, tanto quanto lhos reservaste (creio que, para minha Miséria e presente danação, os reservaste, teu desejo e paixão, para um único homem, ao longo de toda a tua vida) – agora sei que para este único homem te supuseste rainha, a Rainha da qual te vês, no terrível presente, irremediavelmente destronada.

Eu também, mulher, há vinte longuíssimos anos me tenho suposto a Rainha deste mesmo homem. De repente, o destino nos põe, a ambas, frente a frente, e compreendemos que partilhamos o Imaginário dele, deste homem ( também algo mais do que o Imaginário, penso), toda e tanta eternidade, tua e minha.

Não sei o que fizeste ao longo destes anos, se tiveste algum outro homem, se tiveste algum filho, se tiveste algum trabalho ou estudo que te tenham absorvido o suficiente para ao menos atenuar o rigor da “possessão” amorosa. Quanto a mim tive, sim, um companheiro, o outro, por dezoito anos e o vi perder, fatidicamente, seus dois únicos filhos, no espaço de cinco anos. Fiquei-lhe ao lado, sempre, dentro do meu possível e sentindo as mortes de sua prole, de sua descendência, como uma maldição sobre a cabeça, embora sabendo ( ou querendo sabê-lo) que este sentimento, o da maldição, não é mais que algo profundamente irracional. Irracional, ou não, tal sentimento me permaneceu. Quanto ao homem que nunca deixamos de amar, eu e tu, ele me acusou da própria morte quando, para não enlouquecer em uma espera insana, parti para o outro, o que foi meu companheiro por dezoito anos. Ainda que tenha partido para outro jamais, jamais abandonei o homem a quem nós duas amamos, seguindo-o à distância, partilhando o possível e o lícito dos seus caminhos; também tu nunca o abandonaste, agora o sei, agora o sabemos. A seguir a lógica que venho perseguindo, já me são três as mortes nas costas: duas das quais me acuso, por conta própria; outra, de que fui acusada, acusação diante da qual curvei a alma.

E agora tu, mulher. Quando nos conhecemos, por um golpe do destino ou de um acaso perverso(?) nos olhamos em estado de perfeita inocência, até que nos chegou o tempo do desvelamento: duas rainhas – ambas destronadas(?); alguma de nós, ainda, em trono invisível(?). Provável, também, neste Imaginário, outra nova Rainha, por nós inimaginada. E agora tu, mulher, dás o testemunho da tua morte, da tua morte nascida, brutal e irreversível, no momento em que conheceste a minha existência dentro do homem que amas, do homem que amamos, homem – única – razão do teu ser e da tua sobrevivência neste mundo.

E, de repente, eu novamente algoz, novamente agente de mais um crime, desses que a lei não tem como punir, desses dos quais não se pode sequer provar a existência. Eu o sei, que olho-me no espelho e o espelho me delata e me sentencia: Culpada, culpada, culpada. Talvez este homem que amamos, também, – é certo – esteja mergulhado em um inferno indescritível; não posso julgar de sua culpa, nem de sua inocência, embora o saiba inocente e culpado, como eu, um pouco também com tu, mulher, que inocência e culpa são as duas faces da mesma moeda, moeda que nos pertence a todos: não há uma face sem outra, em cada alma.

A questão fundante e sobre todas terrível: tu não tens, mulher, uma Razão suficientemente forte que te possa valer enquanto eu, para o meu bem e/ou para o meu mal, sempre fui e sou lúcida-louca o mínimo suficiente para me salvar, lúcida para me ter posto, minimamente, a salvo, ao longo destes anos. Ele, por sua vez, este homem que amamos, também, como tu, não tem Razão forte a ancorá-lo, é um ser -só-de-paixão logo, a vossa - tua e dele - parcela de inocência é muito maior do que a minha, sozinha nesta consciência e neste desespero paradoxalmente mais denso do que o vosso - tu e dele - desespero.

Penso em ti, mulher, e no meu amor por ti e pela vida que necessito para ti. Choro, sangro-me toda pelos poros do ser, tanto quanto choro e sangro pelos poros do meu amor por este homem que ambas amamos, assim como choro-me e sangro-me por mim; em verdade, não sei, neste momento, distinguir-me de nenhum de vós. Sou-me choro e sangue por nós três, mulher a quem dirijo esta carta inútil, esta carta inútil. A única coisa que me resta é confiar-nos, a todos, ao Deus invisível e vivo, Deus que compreende, perdoa e socorre; ao Deus invisível e vivo, Deus que compreende, perdoa e socorre; ao Deus invisível e vivo, Deus que compreende e socorre; Ele nos haverá de socorrer.

Zuleika dos Reis, na manhã de 26 de maio de 2010.