À míngua

* Você é muito desatencioso. Por anos este fato me passou despercebido. Acreditei que o problema era eu; eu e minha enorme exigência.

* Porém me encontro tão calmo, sou contido. Contento-me com o ínfimo. Sobrevivo com o teu amor mísero, escasso... O pouco que você me dá não satisfaria ninguém. Você não compartilha. Ainda assim evito de reclamar tua ausência e de cobrar teu carinho. Não quero e nem vou te aborrecer com as minhas carências. Tua cabeça já é suficientemente ocupada sem meus problemas.

* Teus problemas que me pareciam fonte de desespero. Traziam-me inquietações. Eu me esforçava em resolvê-los. Vinha e me relatava os conflitos cotidianos. Ah! Só eu sei quanto me desgastei com tuas questões. O quanto acreditei nos olhos castanhos que se exibiam doloridos. Olhos que só esperavam eu virar as costas parar rir de mim. E a boca era de uma fluência sem igual. Conectava idéias e narrava tudo com a voz melódica. Me enganava falando demais. Falava demais para dominar o ambiente, ganhava meus dois ouvidos e me mantinha calado.

* Vou continuar bem quieto, guardarei a necessidade de te ver. Não vou ligar ou enviar cartas. Às vezes será impossível adiar o encontro da caneta com o papel - como agora. Mas pode se tranqüilizar. Estas mágoas não serão enviadas, apenas registradas para driblar a dor.

* E hoje eu abrigo a dor com muita benevolência. Não sou agressivo, abandono a histeria. Deixo lágrimas sinceras e adiro um sorriso falso. O sorriso ficará no rosto até o teu retorno e este não tem data premeditada. Sei que se eu não for, não pedir, não implorar por tua visita você adiará o máximo que puder. Virá um dia, é verdade, porém só em caso de necessidade extrema. Quando carecer de algo qualquer que me julgue provido. Quando precisar se sentir amado ou de uma palavra elevadora. Quando quiser engrandecer o ego ou desabafar em ouvidos pacientes. Quando sentir que o pouco amor que tem precisa ser partilhado. Somente nestas ocasiões você retornará. Não há de perguntar por onde andei e nem com quem. Não haverá o mínimo de importância com o meu bem-estar, como nunca houve. Não vou requisitar tua presença ou desperdiçar teu tempo, mas vou sofrer.

* E eu sofro com tuas vindas tão por si mesmo, nunca por mim. Sofro com a tua desatenção, a tua displicência no mais alto nível. Posso te poupar de aborrecimentos, mas não posso conter os sentimentos. Posso me acostumar com a dor, mas não posso criar com ela um caso eterno.

* Tenho duas opções e nenhuma me parece agradável. A primeira consiste em me manter um mendigo. Esmolar por tua amizade; me saciar com a pobreza de nossa relação. A segunda é o esquecimento. Continuar nesse processo de não ligar e não escrever. Me desapegar de teu egoísmo. Teu egoísmo que parece um gigante, parece me sugar, parece zombar de mim.

* E foi com lágrimas elucidadas que compreendi teu sorriso desdenhoso. Agora percebo que o problema é mesmo você, você e teu afeto indigente, teus olhos fingidos, a tua eterna negligência.

Priscila Silvério
Enviado por Priscila Silvério em 19/10/2010
Código do texto: T2566302