CARTA, À MODA ANTIGA, DE UMA EX-MUSA AO SEU POETA - A Castro Alves, in memoriam

Se te expões nas questões públicas, nas questões de amor não te desnudas nem diante de ti mesmo.

Nas questões públicas sais como um leão de peito aberto; nas questões de amor te utilizas de todos os disfarces possíveis.

Nas questões de amor te apraz manter-nos cativas, a todas nós, tuas cúmplices-cativas nos vai-e-vens de tuas falas, de teus verbos, de teus silêncios, de teus dizeres e desdizeres, de teus desvios, de tuas idas e vindas sem riscos efetivos para o status quo dos centros reais do teu ser, da tua vida.

Nas periferias do mundo nós, as cativas, nós, tuas cúmplices, varamos os anos, as décadas a nos comprazer com os enganos, a nos digladiar dos mais diversos modos, em guerra inútil, inglória, sem saída. Passamos a vida a interpretar, cada qual a seu favor, os signos que distribuis a mãos-cheias.

Não creio que te alegres com isso, penso mesmo possuíres uma segunda natureza que desde sempre te obriga, sempre te obrigou ao uso de tão múltiplos disfarces. Também sabemos, todas, da tua Dor, Dor real que, a despeito de se fazer linguagem, jamais deixa de ser real. O terrível é que nos acusas sempre por tuas mortes, por tua Dor, sem nos dar chance, nenhuma chance, jamais, de dar o testemunho, de te dizer das nossas próprias mortes, da nossa própria Dor.

Em verdade nós, tuas cativas-cúmplices, quase tudo o que nos restou ao longo de tão longas vidas foi o sonho de ainda poder vir a saber quem de nós permaneceu, afinal, no centro de teu ser, com a coroa de rainha, quem de nós Eugênia Câmara; em outras palavras, cada qual tem julgado e sonhado no decorrer dos anos, ser aquela a deter nas mãos as chaves do Reino. E, muito provavelmente, já não haja mais em ti Reino nenhum, já estejamos, efetivamente todas, há muito, muito tempo, destituídas de qualquer espécie de realeza dentro de ti. Talvez nos tenha chegado, a todas, o tempo de, definitivamente, partirmos de ti. Pelo menos para mim, creio que este tempo é chegado, deveras, e que não devo encarar nenhuma outra escolha, a bem do que me restou de amor-próprio e a bem da preservação do meu nome no que ele ainda tenha para ser preservado. Parece-me que, em algum lugar de ti, estás infinitamente cansado de todas nós e que nossa partida acabará por causar-te um profundo alívio.

Temos vivido, as cativas-cúmplices (talvez algumas de nós continuem a viver, ad infinitum) nossas vidas a beijar o ar, como na letra do fado. Damas de outro tempo, de outros séculos, senhoras anacrônicas de vidas que poderiam ter sido e não foram, por nossa, mas também por tua responsabilidade, mariposas em torno da luz até que enfim tombemos na hora definitiva, carregando para a eternidade ou para o pó a certeza, cada uma de nós, a certeza da qual nunca se abdica, de se ter sido até o fim a musa primeira, a única imortal da tua vida, senhor e súdito dos segredos que não nos pertencem nem nunca nos pertencerão, servo e senhor dos próprios segredos que, salvo forte engano de minha parte, tampouco te pertencem nem te pertencerão. E todos, nós e tu a carregar, inexorável e até o fim, o nosso amor inútil. O nosso amor inútil. Inexorável. Até o fim.

Apesar disso, os poemas das vidas, que se fazem nas páginas e nos tempos, indiferentes aos sentidos que lhes damos, permanecem nos livros e independem de nós e das nossas vidas, histórias e mortes, servos, senhores, seres de passagem que somos, passageiros, todos pássaros provisórios que inelutavelmente passarão sem deixar, nenhum deles, pássaros, nem mesmo os condores, vestígios quaisquer de voos reais pelos céus. Afinal, ainda que todos tenhamos abdicado de nossas vidas reais por um mesmo sonho insano, o fizemos por nossa própria conta e risco; os poemas não têm culpa, eles haverão de prosseguir com os seus rostos de inocência, com os direitos que nós não temos; com os direitos que nós não temos nem jamais tivemos.