Iª Carta - Às de Espadas

Londres, 24 de Junho 03

Palavras Incompletas

Não sei que palavras usar

Nem porque letra começar

Passam-me todas pela cabeça

Mas nenhuma pela razão

É tão difícil passar as frases

Do pensamento para a mão

Como passar todo o meu Amor

Da alma para o coração

Parecem todas tão iguais

Estas simples e parcas letras

Que nenhuma servirá

Para transparecer apenas

Uma gota da minha paixão

Minha muito amada, Sofia

É neste papel que te vou tentar expressar algum do meu sentimento, perdido no turbilhão em que se encontra o meu coração. Apesar do acontecimento trágico, que por força do destino nos separou, fado este que em pouco ou nada podemos mudar, apesar do meu inevitável exílio nesta cidade industrializada, fria e mórbida que é a capital inglesa, a única lembrança que me detém, que me aquece e faz viver todos os dias é o teu retrato loiro, sentado na Primavera que abençoava Cascais, no dia do nosso encontro.

Lembro-me bem como estavas bela nessa manhã. O céu reflectia a luz dos teus olhos, o sol imitava ferozmente o tom do teu cabelo, feliz e brilhante, as ondas rebentavam de mansinho nos teus enleios ondulados, cheios de suavidade e maresia. As andorinhas chegavam do Atlântico radiantes, anunciando o início da estação dos amantes. A praia estava deserta, o mar sossegado e as dunas olhavam para mim silenciosas. O tempo tinha parado em Abril. Detinha-me ali num pensamento distante já esquecido, quando me virei e te vi sentada, única e deusa, um movimento natural que viria a mudar a minha vida num olhar. Afinal não estava sozinho, tu também estavas lá. Fiquei abismado a olhar para ti, Sofia. Nunca o mundo me tinha proporcionado uma aparição tão bela. Parecias uma flor jasmim-azul, nascida na praia, fruto de uma essência sobrenatural inexistente nesta Terra. Estavas a olhar para a imensidão do mar, eu olhava para a imensidão do perfil dos teus olhos. De repente, o meu coração parou. Num gesto subtil, num movimento do tamanho do mundo, tu viraste-te. Deixei de respirar subitamente, quando te fixaste em mim. Apaixonei-me logo ali. Não te conhecia, mas já sentia saudades tuas, não sabia o teu nome, mas já o imaginava escrito em longos poemas escritos a o luar. Senti nos teus olhos que o teu pensamento era um espelho do meu. Os teus olhos não mentiam. O tempo passava como montanhas gélidas, derretidas pelos raios atirados pelas estrelas. Todo o Universo conspirou para que as nossas almas e os nossos corpos se encontrassem. Aconteceu tudo tão natural e simples. Levantei-me, sacudi a areia e fiz a caminhada da minha vida. Sentei-me ao teu lado sem dizer uma palavra e tu não te importas-te. O magnetismo dos nossos corpos não podia ser contrariado. O teu simples olhar chamava-me, atraia-me, afogava-me profundamente.

Um simples olhar

O olhar é a forma mais simples

Da comunicação do Amor

Um simples olhar pode servir

Para iniciar grandes paixões

O teu olhar atravessa-me o corpo

O teu olhar trespassa-me o coração

O teu olhar deixa-me alienado

Já não posso viver sem o teu olhar

Quando deixar de ver os teus olhos

Não sei como vou ficar

Talvez fique cego sem a tua luz

Talvez fique esquecido num canto

Apenas tenho uma única esperança

Todos os dias quando a noite chegar

Vou fixar a lua e pensar em ti

Á espera que a magia dos teus olhos

Seja reflectida neste lindo luar

Pois os nossos olhos nunca

Mas nunca se podem separar

Nem por um simples olhar

Até hoje, ainda não percebi ao certo o que se passou naquela manhã em Cascais. Aquele beijo foi tão divino e puro que cheguei mais tarde a pensar que o nosso Amor era efeito de algum romance antigo, reencarnado nos nossos lábios. Hoje interrogo-me se não fui eu rei e tu Inês. Choro de tristeza e alegria ao escrever esta carta, como chorei quando foste embora sem termos trocado uma palavra, um único som que confirma-se que tudo não passava de um sonho.

Ainda não acredito, não tenho a certeza se tudo não passou de um artifício da minha imaginação. Estou a endoidecer aos poucos aqui em Londres. No meu quarto de hotel não entra qualquer tipo de luz, o nevoeiro entranha-se por todos os cantos e a humidade aliada ao frio, forma um ambiente propício à alucinação e a loucura. O mais estranho, o que me faz pensar em sanidade, na incapacidade do pensamento, foi o nunca ter falado contigo. Poderá haver Amor sem palavras. Um Amor feito de gestos, toques, beijos e amor carnal. Com sinceridade, eu acredito que a Natureza ainda consegue juntar duas sementes perdidas no campo vasto que é a vida. A nossa relação podia durar eternamente, porque era simples e a simplicidade é a essência mais difícil de atingir. Consegui perceber isso na manhã seguinte. Coincidências? Existem como mitos

Com esperança de te encontrar na praia, saí no dia seguinte novamente pela madrugada. Ao chegar ao areal, encontrei a mesma paisagem silenciosa, indiferente a tudo o que a sociedade inventa. Tentei estender-me ao comprido, exactamente no lugar em que tínhamos dado o primeiro beijo, no sítio em que te vi nascer para mim. Esperei interminavelmente, fiquei ali sem cessar. O tempo passava e o sol já estava alto. O pequeno vento que corria, por pouco não me forçava uma lágrima, brisa que me trouxe repentinamente o teu perfume doce. Um arrepio percorreu-me o corpo todo, estremecendo-me o coração. Estavas novamente na praia e os papéis tinham sido trocados. Virei-me e tu olhavas para mim como eu te tinha olhado, estavas na mesma porção de areia em que eu tinha estado no dia anterior. O meu sonho repetia-se ao contrário. Os segundos iam passando, obrigando-me quase a que tivesse uma explosão de alegria. Vi-te levantar, graciosa. Caminhas-te até mim. Pensei que ia acordar

ali, imaginei o teu corpo a desaparecer e a fundir-se com este oceano. Foi então que senti a tua mão percorrer a minha cara. Fechei os olhos e todas as minhas histórias, complicações ou alegrias passaram-me num flash. Abri os olhos e estava despido de preconceitos, estava nu. O vento atirou os teus cabelos contra os meus. A praia vestiu-te de Eva. A Natureza começava a arder.

Natureza Ardente

Aquelas montanhas desfalcadas

De pedras e bruxedos

Não são pequenas, são pesadas

Mais antigas que os medos

Deslumbram-se histórias milenares

Com muitos enredos

Os actores são aos pares

O público são os arvoredos

Desde sempre foi assim

A erosão nunca vem tarde

Os ventos não têm fim

Folhas voam, a Natureza arde

Amemos juntos, até que a fogueira se apague. E a fogueira não se apagou logo. Faz hoje precisamente dois meses, desde esse dia. Esta recordação está agora a matar-me por dentro. A impossibilidade de te ver, torna a minha vida indiferente, corre nomeu sangue como veneno.Parece que ainda estou a ver o teu olhar virgem, reflectido na rebentação do mar, ondas que o levavam agora para bem longe. Vejo as andorinhas outra vez. Elas vão e elas voltam. Instinto animal que as obriga a viajar livres, ano após anos. Também eu parti, talvez sem regresso. Não sei, nem nunca saberei se voltaste à nossa praia. Mando-te esta primeira e última carta, porque estou certo que não regressarei a Portugal. A minha alma morreu, desfaleceu, perdeu o sentido, o Norte, a água, o mar e o céu. Depois do momento mágico que foi o nosso encontro ardente, fui-me embora sem perguntas e sem respostas, ia livre. Se morresse naquele momento, morria feliz. Andei então sem destino e fui parar a Lisboa. Estacionei o meu carro e comecei a andar pela cidade, conhecendo novos recantos que me tinham passado despercebidos em vinte anos de capital.

Aos olhares para estas letras, quando leres estas palavras e pensares nestas frases, saberás porque nunca mais me viste. A minha vida acabou antes de ter começado, porque nunca tinha ouvido a tua voz. Ao deambular por Lisboa, passei na rua da Prata e vi duas crianças brincarem. Idealizei os nossos filhos, casamento, futuro e tudo. Entretanto, um dos miúdos gritou a minha morte – Mãe, o pai não me dá um gelado – Um homem aproximou-se e beijou-te. Não te tinha visto, já estavas em Lisboa e com … uma família. Os teus lábios que se tinham aberto para a nossa paixão, tinham fechado agora ali. Corri para casa, peguei em todo o dinheiro que tinha e fugi, fugi da injustiça que é o nosso mundo. Escolhi como última paragem, esta ilha fria. O meu desejo era hibernar, passar o resto da minha caminhada gelado sem qualquer tipo de sentimentos. A única saída era esta.

HIBERNAÇÂO

Frio, brio, calafrio

Os peixes nadam gelados

Na água do rio

(Não podes quebrar)

Aquele mundo, bem fundo

Não se compara á beleza

Do nosso imundo

(É um frio diferente)

A vida gela mas continua

Não posso quebrar o gelo

Erro pela cidade, sigo a rua

(Não sigas que morres)

Ó peixe do lago

Sentir o que sentes

É manjar sem ter dentes

(Não há nozes neste mundo)

Vida ingrata, barata, não desata

Vivo sem vida

Vivo sem viver

Que hipótese? Não tenho saída

Hibernar ou morrer

Sei muito bem que o Homem não pode hibernar, como sei que seria injusto se ficasse contigo e destruísse o teu casamento, os teus filhos, a tua família a tua vida. Deus deu-me tudo para me tirar depois. Fui o homem mais feliz de todos os tempos por dois dias apenas. O nosso Amor foi perfeito, diferente de tudo que já se viu. Sozinho, peço a Deus que me perdoe esta cobardia, esta incapacidade de luta que me devora. Seja feita a Vossa vontade. Vou-me embora. Deixo-te o meu último poema, símbolo de algo que foi o nosso Amor. O vento é apenas uma amostra da brisa adormecida.

O Amor é como o vento

Amor é como o vento

É leve, solto perante as indiferenças

Não tem horas marcadas

Nem correntes que o prendam

O Amor é como o vento

Podes tentar passar-lhe ao lado

Mas o lado não é nada

Não vem no mapa, não é terra, nem nada representa

O Amor é como o vento

Está sempre presente

Mas só te apercebes da sua chegada

Quando é muito forte

(Ao ponto de causar tempestades)

P.S. O meu nome é Frederico Brandão. O teu nome esta escrito na corrente que trazias ao peito.

Um último abraço a vida

Do coração

Frederico Brandão

Rigo
Enviado por Rigo em 26/06/2005
Código do texto: T27886