Ao meu pai

Pai, das pessoas que se foram dessa dimensão da existência para o outro patamar, você continua a presença mais presente. Por isso não entendo a razão pela qual hoje é "Dia de Finados". Acredito em uma certa continuidade não por ser uma simples idéia, mas porque o que sinto me faz seguro disso. Então, relembro aqui o que lhe escrevi no "Dia dos Pais" e renovo o que sinto em relação a você.

Pai, não preciso escrever para mostrar o que sinto ou penso sobre você. No entanto, creio que entende, tanto quanto eu, a nossa mania de registrar sentimentos e pensamentos. Será que, com isso, a gente busca provar aquilo que nos vai por dentro? Talvez! É por isso que lhe escrevo hoje, e você aqui, a me acompanhar enquanto pressiono as teclas do computador.

A primeira coisa a dizer é sobre o que aconteceu logo após o seu falecimento. Uma pessoa que soube do acontecido por meu intermédio, de pronto mandou ver o lugar-comum: "Que pena! Você perdeu seu pai?"

Claro que sua partida, do jeito que foi, doída, sofrida, com lapsos de alegria e sabedoria poética, me impressionou muito e ainda me impressiona. No entanto, não creio que o perdi. Tenho a sensação de que você deve ter dado boas risadas quando me viu responder à pessoa que se disse penalizada por eu ter perdido você.

A resposta que dei foi: "Eu, perder meu pai? Nunca!!! A gente perde uma propriedade, um chaveiro, um livro, qualquer outro objeto; pessoas, não. Pessoas a gente não pode possuir e por isso não pode perder. Se meu pai fosse objeto, eu poderia perdê-lo; mas como meu pai é sujeito, ele sempre estará em mim."

Aquela pessoa fez cara de tacho, como você gostava de dizer, mas entendeu o recado. E é por isso, pai, que me parece inútil lhe escrever, embora atente para aquela necessidade de que falei acima: a de registrar o que se passa em nós. Veja nessa perspectiva essas palavrinhas, sinceras e simples, mas carregadas de gratidão.

Por que me sinto agradecido? Porque o estado da paternidade é dilemático, pai, e você o enfrentou aguerrido até o fim. Veja: "Um rei pode delegar suas funções ou abdicar. Um pai, não. Se os filhos pudessem ver o paradoxo, entenderiam o dilema" (Marlene Dietrich).

Então, como se safar da responsabilidade de ter sido o genitor, em uma sociedade que associa valores e papéis conservadores a essa tarefa, mas que não está nem aí para o drama de viver e transmitir a vida? O que fazer comigo, que não poderia ter escolhido participar dessa brincadeira de viver? O que fazer com a simples dor de ser responsável por essa arbitrariedade perpetrada no ato de gerar, a qual o colocou no lugar de Deus? Eu percebia esse seu dilema, pai.

Mas hoje estou mais amadurecido para entender esse processo e para lhe dizer: "Fique frio. Eu vim ao mundo por meio de você e pertenço à grande vida. Essa condição nos coloca em pé de igualdade existencial porque essa também é a sua realidade. Relaxe! Não vou cobrar o sentido de coisas para as quais não existem explicações fáceis de formular."

É... viver é isto mesmo: um mistério sobre o qual pouco sabemos. Ambos, você e eu, estamos mergulhados nesse mistério. Por isso não há com que se preocupar. Nada a cobrar. Nada a pagar. Ninguém a culpar. Ninguém a quem pedir ou oferecer perdão. Simplesmente existimos, e pronto!

É difícil, pai, nomear esse mistério, mas é possível entender que, apesar dele, há alegria em ser pai. Foi isso o que um filósofo escreveu, talvez compreendendo o pensamento das linhas atrás. Francis Bacon, o tal filósofo, disse: "A alegria de um pai é tão secreta como o seu temor e o seu pesar". Seu temor e seu pesar foram profundos, eu sei. Quanto às alegrias, trago aqui algumas delas para a gente reviver o lado oposto da moeda.

Lembra, pai, quando você me perguntava, vivaz, eloqüente, com olhos brilhando, ar malicioso e pueril: "Qual é o doce mais doce que existe?" Eu, pequenininho, sempre dava uma resposta bem errada só para vê-lo me corrigir: "O doce mais doce que existe é o doce da batata doce". Nisso você soltava aquela gargalhada, ansiosamente esperada por mim e com a qual me divertia como nunca mais ninguém pôde fazer.

Outra coisa de que me lembro eram as viagens que fazíamos. Os dois. Às vezes na garupa do seu cavalo, às vezes, a pé, em qualquer condução disponível. Íamos caminho afora trocando conversas e longos silêncios, como se pensássemos em um só pensamento ou como se buscássemos decifrar o mesmo sentimento. Eu ali, grudado em você, me garantia como o ser mais seguro do mundo. Essa sensação hoje me faz ir adiante e não desistir. Aquele estar presente um no outro é que nunca acaba, entende?

Por fim, me lembro de quando eu ia à roça levar a comida que minha mãe havia acabado de fazer pra você. Eu me mandava, rápido e rasteiro... O que você fazia? Enquanto eu fuçava aqui e ali, você, em uma sombra qualquer, água fresquinha do lado, cafezinho da hora na garrafa, comia até restar o "cantinho". Lembra? Eu media com precisão a sua chegada a esse "cantinho" e me aproximava, disfarçando interesse. Você dizia: "Come, é para você".

Jamais me esqueço desse gesto. Talvez ele seja a mais forte lembrança de sua humanidade: pai, trabalhador, e tendo de superar um golpe atrás do outro, você se fazia companheiro na acepção literal do termo: partilhava comigo aquele que era o seu pão suado, mas honesto e limpo, coisa que hoje anda meio rara por aqui.

A forma solidária como nos alimentávamos era a maneira de a vida se nutrir em nós. Mais uma vez, um no outro, na reciprocidade existencial que só filho e pai podem viver, compreender e registrar como a melhor das lembranças a guardar.

Mas a vida correu, né pai. Você ficou lá, com seus apetrechos de trabalho, seu sol e sua sombra, sua comida e sua água, seu cigarro e seu café, sempre suando para sustentar a existência que não podia ser "arredada" para outro lugar.

Eu saí mundo afora e fui batalhar os meus dias. Aí chegou minha vez de viver aquilo que disse outro escritor: "As mulheres te convertem em poeta; os filhos, em filósofo" (Malcolm De Chazal).

Sim, a poesia é só o modo de viver o afeto do mundo (a dos outros, porque eu não levo jeito pra coisa). Sim, a poesia está grudada em mim, e as mulheres... também.

Filósofo, claro, fui me ver tal e qual após o nascimento da minha filha. É pai, não é fácil mesmo. Aquele dilema a que me referi lá em cima montou em meus ombros feito um tigre que não sabia onde querer ir. Tudo se repetiu comigo e o drama me jogou no olho do furacão. Aí compreendi melhor o que você sentia, seu temor e seu pesar, sua leveza e alegria, após esse dilema ter me tomado também.

O alívio veio da certeza de que "O pai dá ao filho o que ninguém mais pode lhe dar. Sua contribuição é insubstituível" (Ken Canfild). O que você me deu e o que dou à minha filha? Nada de maior importância além da condição favorável a que a vida tivesse explodido em forma de filho, filha. Esse mistério, pelo qual nem eu nem você temos que nos apoquentar, mas acolher como um arcano que nos escolhe para morada e que nos quer relaxados... –"do contrário a porca torce o rabo", não é pai?

Por fim, quero dizer que o vejo comigo em todo lugar em que eu me encontre. Não noto diferença entre o antes e o depois, isto é, entre sua presença física e esta de agora, apenas espiritual. Sinto falta de seus gestos observáveis a olho nu, lógico; mas não sinto vazio algum. Seus movimentos estão naquilo que continuo pensando, sentindo e fazendo para, igual a você, cumprir meus dias por aqui.

Só mais uma coisinha, pai. Como diz o Provérbio Japonês, "A bondade de um pai é mais alta do que uma montanha". É sim. Humano, limitado e com dificuldades mil para conduzir e significar a existência, no frigir dos ovos, naquelas horas cruciais em que ninguém pode aparecer para me dar a mão, lembro-me de sua bondade: ela tem sido a razão pela qual insisto em que a vida vale a pena e que nosso grande compromisso moral brota exatamente do fato de termos uma vida para ser vivida. Obrigado por ter sido o veículo pelo qual esse mistério me ganhou.

Saiba, pai, você é único por isso, razão pela qual continua meu companheiro insubstituível.

Um beijo. E obrigado pela presença.