Admirável mundo cruel

Pais da liberdade, dias de chuva no ano de Iansã.

Admirável mundo cruel...

Lá fora chove. Aqui dentro faz calor. Os meus dedos tremem ao mesmo tempo em que indago a mim mesmo por que escrevo? Talvez pela necessidade de exaurir, talvez pelo gosto atroz de dizer verdades pessoais ou mesmo por não interessar fazer algo mais que condensem em mim sentimentos diversos, tempos diversos ou querer silêncios. As palavras escritas têm múltiplas funções, preenchem espaços vazios e fazem barulho: afagam, esbofeteiam, acariciam, zurzem; espectros nocivos que compromete quem as faz existir. Escrevo pelo prazer de descobrir o barulho das palavras e os estrondos causados pela fusão das mesmas e pela confusão existente entre o que é dito e o que está se querendo dizer.

Na verdade sinto que escrever é o meu ofício e dele me faço escravo de vontade. Não junto as letras como forma de, de querer simplesmente construir sentido ou emitir sentido, não, nada disso. Vou juntando os sons distintivos como distinção de algo que vai nascendo a cada nova construção e como arquiteto vou edificando a vontade de dizer. É isso. A junção delas é uma permanente necessidade de poder ser protagonista no ato da criação dita como grito que ecoa para dentro, se faz denso e dança a sinfonia extenuante tocada pela combinação dos sons em estalos de instantes não registrados.

Os pingos parecem mais intensos e vibram em mim drásticos como se fossem lágrimas. Paro em expiação e vou viajando na lembrança por onde me levam estes que batem na vidraça do meu quarto e eu os vejo correr em desembaraço para uma alameda que não se sabe até onde vai como orquestra tocada em notas de piano... Desejo sôfrego um cobertor que me acalore dessas imagens que me chegam e o corpo em febre depois de um banho de chuva na rua de minha infância e as doces palavras de mãe a se inventarem ardentemente em mim: eu disse tanto que não fosse para a chuva.

Minhas lágrimas se misturam ao calor do quarto e o calor do corpo aquecido pelo corpo preocupado em prece e com toda a pressa de não deixar a febre tomar conta do meu frágil corpo a tremer. Os vultos a entoarem em vozes que já não me lembrava. Passo a tomar a benção a uma legião de gente de branco e sorrisos de luz. É difícil descrever em palavras o que só sabem os sentimentos que tomam conta de mim. Cenas do tempo em que achava que o maior dinheiro do mundo era as cartelas de cigarro que juntava.

Espere. É preciso respeitar o tempo do meu corpo. Não posso mais correr. É tempo de caminhar lentamente e se permitir ser invadido pelo dito, pelo devir do momento morno. A chuva me provoca e provocado me lanço a querer descobrir o desconhecido que habita o espaço escondido por detrás da cortina. Descortino a visão e o que vejo não sei dizer ao certo, o certo é que me desenho abstrato nas palavras que vão brotando do meu estado de alma e aqui deliro, crio, recrio a mim absorvido em lembranças que me absolvem a calma que dantes não havia cá dentro desse peito que palpita em devaneios de outrora.

Escrevo para me recriar, é isso. Basta. Cada nova frase é um novo eu que surge, que vaza do eu que sou eu. As palavras vão me desenhando como se fossem barro nas mãos do artesão. Cada detalhe é feito minuciosamente, concatenada mente feita de momentos existenciais. Uma tessitura nova criada no momento que penso e se penso, logo uma enxurrada de cheiro de mofo vai consumindo as paredes diagonais dos olhos meus e toda costura é desfeita por lágrimas insistentes que deslizam pelo meu rosto e molham o papel, papel da memória, papel de embrulho que fazia questão de ir a despensa da casa e corta-lo em pedaços e transformá-lo em barquinhos e depois da chuva brincar de marinheiros e mergulhar no desconhecido da água empoçada. As lágrimas derramadas em dias chuvosos porque esta danificava o fruto da minha inocência criadora. Na brincadeira de barquinho de papel era possível escutar a voz da professora a contar a história do soldadinho de chumbo nascido de restos de material e feliz por ter encontrado o amor se sua vida.

Escrever é como formar uma colcha de retalho colorida. Você vai selecionando os fatos, apara as sobras, deixa-os ficar em tamanhos semelhantes e depois os costura com linha grossa e consistente. Só no resultado que o sorriso brota nos lábios e a lembrança da molecada tirando os cipós dos coqueiros e a vó no fogão na fabricação da cola caseira e pedaços de papel de seda coloridos e a gente agora confeccionava belíssimas pipas que enfeitariam o majestoso céu. Entre os gritos de uma vizinha e outra a gente se divertia e era um tempo bom de fazer amizades e amigos por toda vida.

As pipas conversavam conosco e prontamente eram respondidas por envio de telegramas. E a diversão ia até que a linha se partisse e a pipa que criara vida própria se fosse habitar outros mundos, como as linhas que se partem todos os dias em nossas vidas. Pessoas do nosso afeto se vão, vão os amores que tinham gosto de eternidade e o cheiro do mofo apregoa em nós a lembrança de nunca esquecermos os casos vividos. O coração bolorento deseja se esvaziar e enquanto os olhos piscam, um arco-íris no horizonte faz acesa em nós a existência de outras realidades, novas brincadeiras e sonhar como a .possibilidade de ir até o fim daquele conjunto de cores e pegar para si, só para si a botija de ouro.

Sinto-me zonzo e ao mesmo tempo em que releio cada frase um novo questionamento e o cheiro de bolo toma conta do espaço. Escrevo para retratar as sensações em mim. A voz da mãe e a ordem de não abrir o forno enquanto o bolo assa porque pode solar. O bolo de imagens que vem e tenho que ir desvendando, fragmentando um todo em mim rochoso. Espere, o verde do quintal de minha infância e quantas frutas gostosas posso degustar. Morder a maçã, provar do fruto proibido e por detrás de tanto verde me descobrir corpo, talento, destino. Desafiar o proibido e me ver proibido de ser eu, convertido a convenções e deixar a voz entalada, presa entre o desejo de explodir e a implosão de sentimentos nunca mais compreendidos... A chuva cria o intervalo e nele posso abrir a janela, molhar a mão, trazê-la ao rosto e perceber a diferença entre a sensação tida e a coisa almejada.

Ouço as vozes e digo que já vou. Sei que não vou. Pronto. Decreto escrito o que quero fazer neste momento. Escrever também tem essa função. A escrita registra o tempo, o texto criado representa o dito, o tempo representado pela escrita te descreve e despido em palavras passo a existir. Afloro e sou além do permitido. Pela escrito eu me narro e narrado sou posto a prova e a leitura. Eu me leio e tu me lês e na compreensão daquilo que sou eu me reinvento.

Pela escrita eu existo. Escrevo então como forma de me existir diante da vida.