A CRIANÇA ESPANTOSA (Carta aberta - trecho final - para alguma das outras de mim)

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Saiba que todos os dias eu me sinto, aqui, ali, onde quer que esteja, como l'enfant terrible, a criança espantosa em certos momentos com uma lucidez que causa medo a ela mesma e, em quase todos os outros tempos, presa da mais suprema ignorância sobre si própria, sobre os outros, sobre tudo.

Vivendo vida de quase total e absoluta submissão a um destino de fuga impossível, sou aquele ser que, há tantos séculos, algum disco voador largou aqui e partiu, sem deixar explicações nem vestígios. Eu, aquela menina de oito anos que, a olhar as outras crianças brincando, sentia saudades da infância, como um velho a recordar o passado.

A vida a amar alguém quase sempre a minha grande sombra, que já se fez e ainda, volta e meia, se faz grande luz; alguém para quem sou também a grande sombra que, em alguns momentos, ainda se faz grande luz. Alguém, nós, a quem a vida não deixa partir, como objetos que, uma vez na órbita da Terra, são atraídos, inexoravelmente, para o chão dessa Terra. Por que e

para que se tudo, tudo, desde sempre, o sempre impossível? Ah, estas duas presenças, a minha e a vossa, que também fazem parte deste mútuo e deste de cada um destino sem anestesia nem fuga possível...

Haverá alguém que possa compreender? Sinto a dor e o amor da minha mais verdadeira rival a me queimarem o peito, a me queimarem mais, mais do que a minha própria dor, mais do que o meu próprio amor. Alguém pode compreender sentimentos assim? Não se trata de remorso, não é tão simples, (não há, de verdade, nada, nenhuma traição minha de que esta mais verdadeira rival me possa efetivamente acusar).

De que matéria sou feita, afinal? Serei eu um monstro, por sentir coisas assim? Nenhuma intuição acode para dizer-me, minimamente que seja, que espécie de criatura eu sou, que até psicanalistas se quedaram perplexos, mas, não sugeriram internação. Dê-me algo, qualquer indício de mim, alguma outra de mim que esteja a ler-me.

Z.

Anoitecendo, no dia 09 de maio de 2011.