Carta à ex

Duas semanas, apenas? Essas semanas foram mais longas do que anos... ou certamente mais longas do que os últimos dois anos... mas mal começo essa missiva e já me adianto. O problema é que não sei se sei por onde começar. Quisera eu esta pudesse ser uma conversa face-à-face, mas sendo a escrita, essa amiga fria, o único meio disponível de me comunicar contigo, terei de contentar-me. E tentarei me fazer entender. Vou começar do presente, pois é no presente, não no passado, que tudo começa, ainda que, verás, eu tenha de retroceder no tempo ao longo desse discurso.

Eu me sinto bem. Bem de um modo muito caro, especialmente por me ter sido tão raro em tanto tempo. Tenho me sentido muito vivo e, ainda que tenha desperdiçado uma boa dose de energia em esforço — agora vejo — inútil, tenho me sentido bastante bem disposto. Acho que dei mais um passo no esforço que venho empregando em desvelar-me a mim mesmo. Ainda há poucas horas acho que comecei a compreender mais uma esfera de mim, e tal desvelação já me inspira novos e ousados (só estes realmente valem!) projetos. E até vejo que, na verdade, não são tão novos assim. De certa forma resgato, com muito mais inspiração, projetos antigos, mas que se me afiguram de novas formas, talvez mais maduras, e, ainda que contenham uma dose de utopia, me parecem como nunca antes possíveis, além de desejáveis e até necessários. Mas há tanto que se descobrir... enfim... Diante desse desejável futuro, me pego olhando pra trás e o que encontro nesses últimos dois anos é um grande estupor, um horrível afastamento de mim mesmo, um conforto horrendamente prejudicial a tudo que almejo, a tudo que anseio. Me compreendo (refiro-me ao “eu” desse período) de modo que não pude enquanto imerso nesse estado. Acho que descubro um pouco mais sobre minhas próprias intenções ao tomar certas atitudes — e foram poucas as atitudes significativas durante esse ínterim — durante tal período.

A compreensão de si aumenta um pouco a compreensão de todos os homens, e alimenta em mim a suposição de entender um pouco mais de ti. Estarei por ventura me iludindo? Talvez, mas é certo que ouso acreditar te compreender, sobre um pouco de ti que talvez tu mesma não tenhas ciência.

Esse olhar pra trás me faz deparar-me contigo e, com teu fantasma (como eco, não como assombração) em minha mente, arrisco um olhar pra frente, teu vulto ainda marcado na retina desse “olho interno”, e, a medida que ele some, acabo por aperceber-me diante de dois futuros. Curiosamente, os dois são o mesmo, pois, como disse (ou talvez não tenha dito?) tenho um determinado futuro em vista. A diferença — num figuras, n’outro não — é aparentemente pequena, quase irrelevante, ainda assim não tenho mais dúvidas sobre qual é, para mim, preferível, qual o mais desejável.

Eu descobri muito do que me atormentava nesses meses passados contigo (perdôa-me se me repito), e suponho um pouco do mal que te atormenta, embora não possa lhe oferecer a resposta como panacea — deves procurar em ti mesma a resposta para este mal. Me aproximo, enfim, do objetivo que me leva a escrever-te estas linhas... mas tenhas paciência para comigo, é difícil exortar certos demônios. Tenho tido tanta vontade de falar contigo nesses dias... entretanto simplesmente não imaginava o que teria pra dizer, e agora, de repente, tudo isso me assalta à mente, redijo todas essas linhas baseado em pouco mais que névoa... mas acredito que tenhas sido sincera comigo, se o foste, então certamente boa parte do que aqui escrevo faz sentido.

Devo citar tuas palavras em nossa última conversa? Gostaria de não fazê-lo, mas te peço que evoque a memória das últimas palavras que trocamos antes de prosseguir. Exposto tudo que aqui escrevi e com essa lembrança em mente, permita-me, de certo modo, começar essa carta novamente, agora pra dizer o que realmente deve ser dito.

Como vais, dileta? Encontrastes alívio para os dissabores que te atormentavam? Temo que não, ainda que possas ter encontrado algum outro tipo de alívio. Mas Porto Alegre tem tido um efeito áureo sobre mim e tenho gozado de uma liberdade que nem sabia que me faltava, insuspeito de como essa cidade havia se me tornado um cárcere. Ainda há muito que resolver em mim, mas pela primeira vez em tempos tenho a perspectiva de resolver-me. E tenho pensado no futuro. E descobri em mim grande desejo de que fizesses parte dele. Eu sinto muito se te negligenciei no período que antecedeu o termo do nosso relacionamento, mas foi um erro que eu sabia estar propenso a cometer, e que foi o porquê de eu ter tentado terminar contigo uns tantos meses antes. Mas me ocorreu naquela vez e me ocorre agora que apartar-mo-nos um do outro é tão somente isso: um erro! Eu consegui ver isso então e o vejo também agora. A diferença é que naquela época eu não compreendia o erro, apesar de reconhecê-lo. Tentar explicar a natureza do erro é proferir palavras em vão, talvez pessoalmente eu pudesse tentar te mostrar, te fazer entender, mas é desnecessário, porque se eu estiver certo, tu deves também estar vendo, ainda que não compreenda.

Tenho razão? Ou estou apenas alimentando um desvario? Te descobriste mais feliz sem mim? (Se sim, não precisar continuar a ler minhas debilidades, apenas me escreva pra dizer que estás melhor, que estás bem, e eu me regozijarei por ti.)

O caso é que descobri, que vejo que tu me és tão cara, tão importante, ainda que não me sejas necessária, que preciso fazer este apelo. Não queres reconsiderar? Eu posso sobreviver sem ti, mas apreciaria tão imensamente não ter de fazê-lo... À parte nossa distância, não queres continuar nosso relacionamento? Não toma por mal a frieza em minhas palavras, sou um maldito apreciador da estética na escrita, mas estes termos não são desprovidos de sentimento, são tão somente a única maneira que sei expressar-me, na qual consigo fazê-lo.

Eu vou brilhar, estejas certa de que vou brilhar, e poderei então te oferecer tanta luz, a ti, que me traz tanta paz.

Pensa de novo, meu amor. Pensa com calma. Sente também, e tenta encontrar. Seja o que for; respostas, vontades, o que quer que haja por baixo e talvez além. Respira fundo, não te sintas pressionada. Mas deixa adiantar-te que o futuro que vislumbro pra nós — se houver “nós” em nosso futuro — é, de certa forma, radiante, mas mais que isso, único! Sabes o quanto eu desacredito do mundo e eu sei que só tu poderás ver o que eu tenho pra mostrar. Pode não dar certo, mas como podemos ousar nem tentar?! Como poderias me negar a mera experiência, a possibilidade? Uma chance mais de caminharmos lado a lado, é o que te peço, não queres arriscar? Uma coisa eu vejo com clareza (por favor, minhas próximas palavras nada têm de melodrama, é apenas observação de um fato), tu és a única pessoa que eu conheço ou que possa imaginar com as faculdades necessárias para me acompanhar por toda a vida em uma, por assim dizer, “paródia” matrimonial. (Digo “paródia” pois bem sabes que um matrimonio convencional não serviria a nenhum de nós dois, ainda que não me refira a extremos, como Sartre e Mme. de Beauvoir.) Só tu tens a capacidade de pensar sem arroubos e a coragem de se questionar sem pressa e o cuidado de entender sem se enganar e a vontade de ascender sem se perder e, mais importante, a compreensão pra questionar sem julgar. Só tu poderias estar a meu lado pra sempre. Ou ao menos, é só tu que eu quereria que estivesse.

Um pouco bravata, um pouco desabafo, um pouco apelo, esse discurso chega ao fim. Espero não ter te enfastiado em demasia. Acredito que saberás ler minhas palavras. Rogo que consigas ler minhas palavras.

Continuamente encantado com tua amizade, subscrevo-me

Sempre teu

Cae

(dedicada à Andréia Refosco)