DE UMA OUTRA OFÉLIA A UM OUTRO FERNANDO PESSOA

Por que nunca ousaste confiar-te a mim, em tuas verdades mais fundas? A mim, que sempre ousei amar-te, a ti e a todos os teus heterônimos, cada qual com suas verdades e fingimentos próprios?

Por que me condenaste a esta Carmem, a mim que sempre sonhei-me Maria do Carmo, a mim que nunca desejei de Carmem os fados, nem o destino? A mim que nunca sonhei matar-te, nem a ninguém mais, nem sofrer-me esta morte, em cada um dos dias cotidianos?

Por que, do meu amor por ti e por teus eus todos, esta sina de viver a sangrar pelos poros dos poemas, dos contos, de cada um dos meus e dos teus textos, assim como a sina de ver-te a sangrar, no comum e no incomum dos dias, como um Prometeu no Cáucaso, um Orfeu sem Eurídice, um Fernando Pessoa sem ele-mesmo?

Por que esta sina de ver a sangrar tuas outras amadas todas, em razão da minha existência, e de eu ver-me a sangrar pela morte que causo a elas e a mim e a ti pela existência delas?

Por que esta sina de ferir-nos sempre, de ferir-nos um ao outro, seja o que for que dissermos, ou que calarmos, ou que façamos, ou que disfarçamos?

De onde e por que nos veio este amor, feito de perdição e de sofrimento, este amor que, no entanto, guarda em um sacrário, sua face divina de enlevos?

Há uma Estrela a guardar-nos o Tempo de Redenção que aguardamos?

Por que me dizes para afastar-me? Por que me trazes de volta sempre?

Por que não vês que meus textos desesperados, de sarcasmo, de acusação, me são o meio de defender-me de morrer de vez por ti e que não passam, em verdade, tais textos, de outra face do meu terrível amor, este amor sem saída?

Por que não compreendes que, para além da falta de saídas, para além de todas as impossibilidades, efetivas, tudo o que mais almejo, tudo o que me restou para almejar, a esta altura dos tempos, é que este amor que me une a ti e o amor que, talvez, ainda te una a mim, venham a se transmutar em bênção para os teus caminhos e em bênção também para os meus caminhos, neste mundo composto quase só e exclusivamente de perdas?

Por que não te propões a compreender e aceitar, desde o fundo de ti e de cada um dos heterônimos algo, que seja, disto tudo que nos digo? Por que não te propões, por que não vos propondes a isto?

Escrita e publicação no início da amanhã de 01 de julho de 2011.