SER CRIANÇA...
 
Querida amiga,

Ah, minha amiga! Ser criança, eu me lembro, era ter respeito pela natureza, o temor de maltratar os animais e a vontade de ver crescer coisas bonitas em nossos caminhos. Era, a infância, o período em que vivíamos cercados pela beleza e pelos mistérios de um universo que só para nós, pequenas crianças, fazia sentido, mas que era, no final, partilhado por todos a nossa volta.

Hoje? Ah! hoje... Hoje não temos mais crianças. Temos meninos-grandes empenhados numa disputa “acirradíssima” para ver quem é melhor no nado, no balé, na aula de inglês, na aula de piano e na academia que prepara o ser para ser outra coisa além do ser. Ah! que saudade daqueles bons tempos... Em que um não significava um não e um sim era comemorado como se fosse o melhor presente do mundo. E era.

Estudar? Ah! estudar... Estudar era prazeroso e as professoras não “ensinavam” somente o bê-á-bá. Elas iam mais longe. Ensinavam como se comportar, ter respeito pelos mais velhos e, ainda, ensinavam para a vida.

Ah! ser inocente, era ser inocente mesmo! Era, por exemplo, acreditar em bicho-papão, papa-figo, lobisomem, alma penada e “as outras coisas do outro mundo”...

Ser criança era se sentar debaixo do alpendre (ou na área de qualquer casa de classe média), num tamborete (ou numa cadeira confortável), à tardinha (ou à “boquinha” da noite), e ouvir, dos mais velhos, as lições para um futuro melhor – através das histórias de “trancoso” (como se chamava lá no interior). E se ouvia mesmo.

Ser criança era aproveitar o período de ser criança. Brincar era ter contato com a terra que servia de caminho para se ir à escola; com o barro que molhado, mais um pouco, servia de anteparo para o frio e para a chuva, nas laterais das casinhas de taipa; com o mato que alimentava o gado e dava de comer, também, àquela meninada que completava a sua alimentação com os preás, as goiabas, as pinhas e as mangas; com a água do rio que limpava os corpos, irrigava as vazantes de batata e molhava o tomate e o pimentão – transformados, mais tarde, em saborosos alimentos; e com o fogo que iluminava as noites escuras, em forma de lampião, e se tornava uma bonita fogueira nas noites de São João...

Hoje? Ah! hoje... Hoje é competição até entre as escolas. Os cursinhos preparam para o vestibular e as escolas só se preocupam em colocar em outdoors, espalhados pelas cidades, as fotografias de seus alunos que passaram nos vestibulares de Medicina, Engenharia, Direito, etc. e tal.

E os professores, hem? Ah! os professores... Esses, se esforçam, mas não conseguem mais mediar o conhecimento como deveriam mediar. Também! – é um corre-corre danado: aulas para cá – em instituição pública; aulas para lá – em instituição particular; aulas depois de lá – em cursinhos. Cadê, então, o tempo para planejar e se capacitar? Ah! o tempo para planejar as aulas? Sim, existe esse tempo, mas ele fica entre o horário de uma boa noite de sono e o horário de acordar ainda cansado pelas horas retiradas para, justamente, prepará-las.

Ah! e os alunos de hoje, hem? Bem, eles precisam voltar a ser crianças de novo para poderem aprender a dar valor à vida... a conhecer a felicidade de serem, de fato, crianças.



 

P.S.: Esta carta é a ampliação de um comentário que deixei na página da amiga Edna Lopes, após ler a prosa poética "Sobre proteção à infância"( http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/3271974).



Imagem da internet








Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 12/10/2011
Reeditado em 04/02/2012
Código do texto: T3272626
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