Minha querida criança,



               Não sei se devo admitir,  mas confesso que estou com medo, não aquele medo comum aos meus tempos de menina. É um medo maior... 

               Medo do mundo que estamos construindo, das desculpas que encontramos para achar que tudo "é normal", "natural"...


               Sabe o que me assusta mais? A falta de limites. Lembra quando ficávamos  em baixo da cama depois de uma traquinagem? Quando nos escondíamos pelo mato com medo de voltar para casa por ter infrigido as regars? 

               Naquele tempo infrigir as regras significava atrasar para o almoço, brigar com o irmão menor, dizer palavrão. Havia um castigo para cada um desses “crimes”. 

               Hoje me assusta as crianças brincando de adultos pequenos. A infância roubada pela erotização. A inocência perdida nos jogos de sedução aprendidos desde cedo.

               Minha pequena, perdoe-me por não ter cuidado melhor do mundo aqui fora. Por ter falhaado em meu sonho de construir uma sociedade mais justa.

               Não, não me olhe com esse olhar reprovador. Eu sei que naquele tempo já existia falta de respeito, crianças mal educadas, briguentas, barulhentas. Sim, seu sei que nem tudo era melhor. Não precisa me lembrar disso.

               Mas, covenhamos, naquele tempo nossas brincadeiras eram mais saudáveis, nossos brinquedos mais inocentes. Claro, eu sei que falo assim porque cresci na zona rural, fui criada correndo pelos campos, nadando, andando a cavalo, pescando, subindo em árvores, construindo meus brinquedos. 

               Não tinha televisão disputando espaço com os amigos e/ou os pais. Tínhamos a lua para clarear nossas noites e as estrelas para iluminar nossos sonhos, que cabiam todos naquele pequeno espaço geográfico. As nosites escuras eram testemunhas de nossas travessuras mais perversas, como enrolar-se me lençóis brancos e assombrar os mais medrosos. 

               Sinto falta das conversas ao redor da fogueira, dos jogos inventados. E quando nos mudamos para cidade trocamos os terreiros pela calçada, onde a conversa “corria solta”. As brincadeiras de passe o anel, caí no poço (onde quase sempre acontecia o primeiro beijo) e depois a culpa, o medo de ser descoberta. 

               É minha criança, muita coisa mudou, talvez por isso eu esteja me distanciando de você, mas por favor, não permita que minha maturidade lhe mate. Lute, sobreviva e nunca vá para lugares onde meus sonhos não lhe alcancem. Você é meu melhor pedaço. 

               É em você que encontro forças para enfrentar as atrocidades dos adultos, ternura para ver o mundo sem perder a fé na humanidade, carinho para dar aqueles que me ferem. Sem você, minha criança, a amargura já teria destruído a minha alegria, meus olhos não veriam a poesia da vida e meus ouvidos estariam surdos os sons nascidos da simplicidade.
 
 


*A Criança que existe em mim
Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 12/10/2011
Reeditado em 01/03/2014
Código do texto: T3272827
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