Cuore'ngrato

Meu caro amigo: outro dia tive notícias suas. Fiquei sabendo que você está trabalhando agora numa empresa de planos de saúde. Estou feliz por você. Quem vive ocupado não tem tempo de pensar besteira — e você já fez tantas nessa sua vida errante. Só eu, que me mato de trabalhar e não tenho jeito. Bem, se é mesmo na Unicuore, espero que seja na área de vendas, pois ninguém resiste ao seu papo. Você tem jeito para essas coisas.

Mas a qualquer hora tenho que aparecer por aí, para fazer um plano de saúde. Ando precisado. Não é nada para o corpo em geral, pois me sinto otimamente bem. É apenas para o coração. Quem sabe você não tem um plano especial para ele?

Meu caro amigo, ouça o que diz esse nem tão querido amigo. Meu assunto é sério. Meu pobre coração já não é mais o mesmo de antigamente. Temo por ele. Tem sido submetido a emoções violentas ultimamente. Certos pensamentos têm sobrecarregado o pobre coitado. Vou lhe dar umas noções para que você me escolha o melhor plano possível.

Na parte disciplinar, é muito desobediente; com ele não adianta a voz da razão quando teima com alguma coisa. Mas, em compensação, é sincero e franco. É meio renitente, e tem memória de elefante; demora uma vida para esquecer. (Lembra-se daquela mulher que você disse para eu esquecer? Pois bem, casei-me com ela. Depois, descasei-me). Tenho a certeza de que ele é bem forte, pois o que ele tem suportado ultimamente não é para qualquer um.

Na parte física não anda bem. Ele está aos pedaços, sangrando, precisa ser costurado, remendado, desobstruído. Não é um coração novo, mas é pouco usado. Às vezes penso que é a primeira vez que ele funciona realmente. Olhando assim, parece coração de adolescente.

Na parte sentimental é que está o problema. Já me trouxe decepções, e raramente me dá alegria. Ultimamente ele está assim: ora devagar, ora apressadinho, calado ou barulhento, mas sempre solitário, desolado. Ora me pula demais dentro do peito, querendo saltar ela boca, ora se esconde em algum cantinho, que até parece ter parado de bater. Anda muito triste, o pobre coitado. Tenho a impressão de que ele tem problemas de “sopro”, pois fica ininterruptamente me soprando um nome. Ainda não sei bem qual é.

Mas é um coração manso, grande que só vendo! Nele cabem todas as dores. Já foi muito seresteiro, de cantar madrugadas afora, mas agora anda calado. Meu coração perdeu a voz.

Vou lhe pedir um favor de amigo. Só depende da sua boa vontade. Faça um bom plano para meu coração, porque o coitado anda desiludido, sem planos na vida. Está completamente desassistido. Ele está entregue ao SUS, e precisa de assistência particular. É um coraçãozinho bom, por isso merece um desconto nas mensalidades. Mas isso fica a seu critério. Enfim, faça por ele como se estivesse fazendo por mim.

Mas é fundamental que você me arranje um plano sem carências, porque de hora para outra vou precisar. Os males do coração não avisam. E já ando sofrendo há mais de cinco anos. É tempo demais. É chegada a hora de me cuidar. E bem que eu tento, jogando futebol, fumando menos, alimentando-me direito, mas isso não basta. É necessário que alguém cuide dele. Um coração não pode viver sozinho. Então, arranje-me um bom plano. Que seja um plano completo. Preciso que dê direito a internação, médico especialista, enfermeira, quarto particular com televisão e computador, frigobar, whisky com gelo. Ah!, não esqueça: Martini doce com azeitonas. Faça-me essa concessão.

É preciso ainda, e isso é fundamental, que o plano cubra ataques repentinos de saudade, de solidão, de desespero e de bobeiras.

Mais sobre meu coração não sei dizer. Estou conhecendo o bichinho agora. Nunca lhe dei a devida importância. Ainda vou descobrir porque ele anda desse jeito.

Às vezes penso que é por causa de certa moça que ele conheceu outro dia. Quando pensa nela ele bate acelerado e me vem a taquicardia. E volta o “sopro”. Mas vou esperar mais para ter certeza. Ele já me enganou tantas vezes...

Como você pode deduzir, o diagnóstico é um só: o caso é grave, gravíssimo. Por isso é bom que seu plano inclua transplante. Talvez seja a única alternativa para esse coração ingrato.

Marcelo Grillo
Enviado por Marcelo Grillo em 10/01/2007
Código do texto: T341952