Carta ao meu velho pai (II)

Ôi pai!

Saudade – a mesma saudade de sempre. Um nó na garganta sempre que penso que muitas coisas não estariam da forma que estão caso o senhor não tivesse partido tão cedo.

Por aqui o calor está escaldante. Certamente, se nada tivesse acontecido, na noite de hoje uma espreguiçadeira seria colocada na área de casa e lá o senhor dormiria olhando para as estrelas. E a mãe diria: “meu velho, por favor não durma ao relento!”. Como se o senhor a escutasse. Por que é que o senhor sempre fazia o que queria hein? Teimoso!

Sempre que teimo com algo, logo escuto: “também, filha do João Rocha!” e, ao invés de ficar chateada ou pensativa, fico orgulhosa. Que pensem o que quiserem!

Pai, hoje tenho mais idade que o senhor quando partiu. Sempre pensei que a vida me traria a tal da maturidade. Que nada! Ainda sou imatura em muitas coisas. O senhor partiu com essa sensação?

No final de semana eu estava na praia e, conversando com uma amiga, citei um dos seus “causos” e instantaneamente falei: “que saudades do meu pai!”. Essa saudade está escondidinha dentro do meu coração e, vez ou outra, me faz chorar, permeando o meu corpo com uma fragilidade de dar dó. Logo eu, a menina dos seus olhos que foi criada para ser forte, decidida, auto-suficiente. A menina que dançava aos 12 anos aninhada nos seus braços. A menina que foi criada prá brilhar e anda tão desbotada.

Atualmente tenho aninhado-me nas palavras. Nelas eu “boto prá quebrar”, independentemente de ficarem bem colocadas ou não. Uma forma de expurgo. Preciso estar e me manter limpa por dentro. Uma questão de honra. Afinal, são tão poucos que estão dispostos a ouvir. Os tempos mudaram pai. A grande maioria dos meus amigos estão mais preocupados com as suas aparências físicas e financeiras do que com uma simples mesa de bar para debulhar um bom papo. São poucos os que entram na avenida no mesmo ritmo que eu. Poucos os que enxergam um pedido de carinho, uma palavra de conforto, um riso matreiro prá alegrar.

As tempestades continuam me abatendo, muitas vezes forçando-me a procurar um abrigo próximo, sob pena de inundar-me por completo. Mas também há dias especiais, dos quais tiro energia prá seguir em frente.

Seus netos estão lindos e fortes. Hoje a Sophia brindou-me com uma resposta que deixou-me embargada. Ligou-me e, no final da ligação eu falei: “eu ti amo meu amor”. Sabe o que ela respondeu? “não dinda, eu ti amo muito mais, muito mais que o mundo”. Como eu estava em uma reunião informal, dei um jeito de sair da mesa para suspirar fundo e agradecer à Deus tamanha sensibilidade. Justamente o que eu precisava ouvir naquele momento.

A Maria Clara está linda e cheia de vida, aguardando o seu espaço para bagunçar um pouco a minha vida. O senhor sabe o quanto eu gosto disto.

A mãe está bem, embora tenha sido mordida por um inseto na passagem do Natal, que deixou a sua perna com uma ferida difícil de cicatrizar. Levei-a ao hospital no final de semana e encontra-se medicada e bem melhor. Continua guerreira com a própria vida, altiva e com aquele poder de argumentação que o senhor bem conhece.

Muito calor pai. Vou ligar o ar condicionado – ou seria melhor dormir ao relento com o senhor?

RR - 23/01/2012

rosalva-cantinhodopapo.blogspot.com

Rosalva
Enviado por Rosalva em 24/01/2012
Reeditado em 08/08/2012
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