Não sou mais poeta

Um dia um amigo me disse que estava começando a sair de mim e a falar dos sentimentos dos outros.

Estava pronta, era poeta. E assim caminhei nas letras durante muito tempo. Acreditando que era poeta e que falava dos sentimentos alheios.

Descobri, tarde, que sou o inverso da lógica.

Quando comecei a escrever, achavam que falava de mim, quando na verdade, eu sempre pensei que falava do outro.

Quando me disseram que falava dos outros, na verdade já estava falando de mim.

E falando de mim, dos meus sentimentos, das minhas vivências próprias fui andarilha das palavras. Viajei por meu interior. Naveguei em minha alma até encontrar os mais profundos sentimentos. Olhei meus cantos escuros e fiz faxina geral. Joguei o lixo para fora, joguei a dor e o sofrimento plantados, hoje vejo, deliberadamente por vidas de outras iguais a mim, cantadas na poesia, para fora.

E vivi a vida delas, muitas vezes até uma vida vulgar, uma mulher de espírito pobre. Mas vivi e coloquei tudo em meus textos. Até a raiva. Pintei a alegria que tenho dentro de mim, a vontade de viver, a felicidade, as vivências da infância, a família, os amigos.

Compartilhei minhas angústias, minhas tristezas, meus sonhos verdadeiros. Do fundo do coração.

Falei do amor, da paixão, do desejo. Falei de sentimentos guardados no fundo da alma. Vivi cada instante o que escrevia.

E ao escrever sempre escrevia para alguém em especial. Um leitor que a meu ver se importava especialmente com o que sentia e retribuia meus sentimentos com sinceridade.

Quanto escrevia, ria sozinha, sorria, sofria profundamente. Se era dor e sofrimento que sentia, as lágrimas desciam em abundância pela face e todo meu corpo se encolhia diante da dor.

Não dormia à noite sofrendo com o que tinha vivido na poesia "dos poetas" durante o dia.

Quantas vezes levantei de madrugada e fui escrever. Quantas vezes parei no meio do supermercado ou estacionava o carro para anotar algo que naquela hora brotava dentro de mim. Uma frase de amor, um sentimento de carinho, um desejo. Tudo, tudo verdadeiro.

Quando ouvia canções específicas, me debulhava em lágrimas passageiras ou chorava o dia inteiro, dependendo do que elas estavam me falando.

Chorava de alegria, achando que as canções eram para mim e pelo mesmo motivo, chorava em grande sofrimento porque "os poetas" viviam me dando adeus em suas poesias.

E assim, caminhei esses meses no recanto. Não entendia porque de algumas situações. Porque na maioria das vezes tinha de chorar com as poesias que lia. Sabia que as vivia, mas não entendia porque tinha de viver. E me perguntava o que tinha feito para ser assim.

Enfrentei situações que para mim eram verdadeiras, reais, realmente vivi. Fuga de amigos, sumiço, silêncio eterno.

E tentei fugir várias vezes também, então um anjo profeta, um rio de esperança vinha e me dizia uma palavra de ânimo. Por viver o que escrevia e o que lia, sofri demasiadamente por isso.

E ao sofrer, falava e falava e nunca parei para pensar e tentar compreender o que tinha acontecido. E que nunca mais recebia uma resposta. E nunca me perguntei verdadeiramente o porque.

Sempre achei que era eu a culpada, que tinha feito algo que magoou e no entanto fazia parte do método de trabalho, da diferença. E não estou outra vez julgando. Estou dizendo, no único lugar, embora público, que achei que era meu, mas vejo que não é.

E um dia, surgiram estradas paralelas em minha caminhada. Curiosa, motivo primário que me trouxe aqui também, segui por elas.

Atônita percebi um mundo ao redor de mim. Um mundo de astros que giravam ao redor de mim. Lutei, esperneei porque entendi tudo errado no princípio. Briguei, chorei, sofri e tudo isso registrei em textos aqui em meu cantinho.

Mas agora, vendo palavras, frases, vivências minhas, lendo poesias dos poetas, vi um círculo, uma ciranda, um redemoinho, um furacão de vidas rodopiando, rodopiando, perto, longe, ao lado, em cima, enfim, girando aqui e em outros cantos da vida e me vi dentro dele.

E compreendi aquilo que na verdade sempre quis saber. Que sempre busquei. Respostas. E agora "o sol encontrou as respostas e elas lhe fizeram mal" disse a voz do vento. "perdeu-se nelas". E era de mim mesma que a voz falava. E só hoje compreendi isso.

Compreendi porque tinha de chorar quando tudo estava bem, porque sofria quando tinha acabado de passar momentos de grande felicidade.

A vida real não é assim. Tenho uma também. Tenho família, amigos e sei que a vida real não é assim. Em poucos meses sofri e chorei mais do que em dois ou três anos de minha vida. E vi que sofria por viver a poesia de verdade, tanto ao escrever como ao ler "os poetas".

E não sei, nem sei se devo falar, porque tudo o que falo parece que se volta contra mim e entendem errado e me dizem coisas que não consigo entender, que me ferem, que me machucam, porque na verdade não eram minhas vivências, mas de outras iguais a mim.

Comecei a prestar atenção em conversas de vizinhos meus em outras casas fora daqui e percebi que ninguém é quem eu pensei ser.

Nada é real. Que as conversas são tão estranhas para o mundo e vivências das crianças. E com isso percebi que quando me falavam que "eram vozes de crianças que ouvia, cuja prescrição não as impede de viver, e que não querem prender-se ao futuro, só querem viver o momento, o presente", compreendi a realidade de minha vida aqui, na poesia.

E revoltada com algumas conversas, deixei-me levar pelo temperamento e falei o que, mesmo achando no momento que compreendi perfeitamente o que queria dizer e porque, o que não devia falar, porque não tenho o direito de julgar ou mesmo de acusar.

E que tenho de aceitar as diferenças. Hoje acho que compreendi as diferenças também.

Aceito-as. Mas não posso viver dentro delas. Não consigo. Mas não posso mais vivê-las. Não são minhas e nunca foram. E não posso mais vivê-las porque o que está envolvido em mim, não é o mundo da poesia, do profissional de querer.

Estão ali meus sentimentos, minha vida real, minha família, tudo. Estou ali por inteiro.

Sempre quis saber a verdade, o porque de muita coisa diferente que via.

Detalhes. Detalhes. E agora me arrependo de querer saber. Arrependo-me de ter caminhado atrás dela. Sofro mais hoje.

Perdi o ânimo de escrever. Não sei mais o que falar. Não consigo mais. Queria fazer uma poesia alegre que inundasse a alma de quem a lesse.

Queria que outros sentissem a emoção que eu sinto lendo os poetas. Queria passar essa emoção também em minha poesia.

E queria em especial que alguém as lesse e pensasse: Ela está escrevendo para mim. E que vivesse de verdade. Que sentisse de verdade. E não só como profissional de querer.

Me perdi nas letras. Não sei mais escrever, o que dizer. Faz tempo, desde que comecei de ver o que acontece, que luto para continuar, que tento com todas as forças, mas estou cada vez mais muda, calada.

Quase não visito mais ninguém, quase não deixo comentários. Entristeci-me com o mundo poesia. Decepcionei-me. Quando escrevo tento não falar de mim, mas não consigo. Está ali. Não sei falar dos sentimentos dos outros como me disseram que estava começando a fazer.

Então, descobri, tarde, que minha mentira, virou verdade.

E perdi o que tinha de mais precioso. Eu. Doei-me a alguém. E não consigo mais pegar de volta. Azar meu. Doei para quem nunca vai falar de si, sempre vai falar de mim, por mim. Doei para quem já me disse que "essas palavras, mesmo saindo de mim, são tuas", porque sou eu, falando comigo.

Falando de amor comigo. Eu, amando a mim, com a vida minha das outras. Aceito, mas acho injusto ter de sofrer uma dor injusta, despedidas sempre, lágrimas e dor que não são minhas.

Descobri, tarde, que só recebi um adeus, definitivo adeus, eterno adeus. Descobri que "verdadeiro amigo, falsos amores".

Não consigo mais avançar. Não sei mais o que dizer sem falar de mim e de mim não quero mais falar para não expor mais ainda minha fragilidade, meus sentimentos e tê-los esfacelados em poesias, misturados as vidas de outros. Sentimento de ser uma cobaia num laboratório.

Hoje me alegrei muito ao ver canções que estavam caladas, mas depois lendo-as com atenção senti outra vez que já sou um passado. E que o passado não volta mais. E que não há e nunca terá a prescrição de um futuro como eu o imagino, como eu o sonho.

Não consigo e não quero mais me ver sendo despedaçada, magoada e ferida sem culpa. Não mereço isso.

Sou gente, humana e não mereço isso. E descobri, tarde: Não sou mais poeta.

Maria
Enviado por Maria em 23/01/2007
Reeditado em 23/01/2007
Código do texto: T356010