carta de um anarquista
 
Saudações;

De toda maneira Virgilio Oza me pediu que fugisse dos torquemadas, mas ao invés de ir à França preferi correr riscos e fiquei em Andaluzia a escrever meus poemas ensolarados, ao som de algum tocador de música flamenca, aqui as Guardia de Asalto ainda não terão como me pegar,outra coisa: sou um anarquista sem símbolos externos que me identifiquem como tal, lhe confesso ainda tenho uma alma anarquista; não quero o poder, o poder não me interessa sou adepto da autogestão e porisso  pago o preço. Os facistas querem a minha alma. Stalinistas, trotskistas e nacionalistas requetés e carlistas também. Esta noite acordei com sons de tiros disparados por toda a madrugada, aviões alemães com aquelas sirenes pavorosas despejavam as primeiras bombas sobre a cabeça da população indefesa. Me informaram que as armas leves utilizadas pelos nacionalistas chegam aos montes de Portugal, os portos lusos serve aos fascistas, o ditador portugues é assecla de Franco. Soube por um emissário, que a fuzilaria correu solta em Galiza, os tempos de Urraca revivem na nação do caudilho, os campos galegos estão tomados de sangue. Escrevo-lhe essa carta com papel borrado da areia cinzenta da Andaluzia, tomado de assalto de um quartel nacionalista que adormece comigo e tenho-o por companhia inseparável. Infelizmente. Pois sou um pacifista, mas o que posso fazer, senão me defender e defender meus ideais?  Neste instante que lhe escrevo penso num trecho da obra surrealista Peixe Solúvel de Breton que não sai de minha mente: 

"Menos tempo do que é necessário para o dizer, menos lágrimas do que é necessário para morrer"

Companheiro esta década é uma década perdida para a Europa, para nós espanhóis é uma tragédia particular. O niilismo parece ter se instalado de vez, não tenho muita esperança de que o conflito mude a nosso favor. A realidade está doída como solo de guitarra flamenca; ela tem ultrapassado as raias da mais pura ficção. Os nacionalistas com sua glória ferida sonham com um império desmoronado, há muito perderam a noção sensataz, se é que tenham alguma, são prisioneiros em sua caverna de ignorância, loucos e ensandecidos, nessa luta intestina, na qual tomamos parte,  a gritar  “Arriba España!”. A Espanha  este caudal cultural, com sua unidade em frangalhos, unida pela ponta ogival das vetustas catedrais - na inquisição secular e na eterna volúpia sanguinária de Castela. Essa é a alma desses nacionalistas, liderados por El generalíssimo amparados por ideias castilhistas, centralistas e autoritárias, fascista mesmo!. Suas falanges espalham o terror. Seu exército africano é espúrio. Mas lhe confesso meu amigo,  do lado de cá, trazem em suas  ações certo  entusiasmo pela fé salvacionista do ideal, amparados em paraísos artificiais futuros, sem se preocupar muito com os meios utilizados, elas visam, como as dos fascistas os mesmos fins que é tomar o poder, é certo que  com propósitos diferentes mas com métodos muito parecidos. Penso que somos uma diversidade de povos: bascos, galegos, catalães, andaluzes, aragoneses, e  a quem interessa a centralidade? A Castela e aos setores atrasados de nossas elites, setores conservadores da igreja, das Forças Armadas, enfim. Sonho com uma  península iberica confederada e unida, sem centralismo, vivendo como povos irmãos. È sonho, sei que o caldeirão de ódios está destampado. 

 A   propósito sonhei com meus pais, minhas irmãs e meu único irmão, mortos pelas milícias carlistas, eram de posições liberais e apoiavam os republicanos. Se recusaram a fugir durante o cerco da Catalunha pelos nacionalistas e foram fuzilados. A imagem deles se eterniza em minha memória, qual é o preço da liberdade? Somos um país moldado pela  violência ela é o único e último recurso, o sangue escorre das entranhas de nosso povo e suja a todos. Estamos maculada pelo sangue que está simbolicamente festejado nas festas sacras do martírio de Cristo e nas arenas de toros. Depois de Guernica o que virá? Ontem soube de uma dança macabra de comunista com cadáveres de freiras, ocorrido  na Zona Vermelha. As igrejas foram incendiadas, padres torturados, freiras estrupadas, túmulos profanados, pura insensatez, até onde esse conflito chegará? Será que sucumbirá de vez nas pontas das  baionetas, na banalização dos fuzilamentos? Os "paseos" são comuns a  todos os lados envolvidos. Ouvi pela rádio o famigerado Coronel da Luftwaffe Von Richtoffen declarar que o equipamento alemão tem sido aprovado nos testes, armas saídas de algumas cabeças diabólicas que estão sendo utilizadas contra nossa gente, o teste de  táticas de guerra - a Blitzkrieg. Os bombardeiros as nossas cidades  tem sido de uma eficiência mórbida. Os espanhóis pagam o preço, o preço da discórdia. As tropas nacionalistas tal como a Companhia de Jesus, querem a força a conversão pelo sangue de todos aos ideais pátrios que já não existem, de outro lado os comunistas prometem a boa nova, o paraíso terrestre - a felicidade vindoura, enquanto esmagam as experiências de autogestão. O fato é a Espanha arde. Lembrei-me esses dias da inquisição espanhola, como fomos cruéis e bárbaros, o episódio sanguinário do incêndio da Sinagoga de Sevilha, que foi destruída num sombrio domingo ensolarado de 1479, onde crianças, velhos e jovens foram brutalmente assassinados. Mais de oitenta pessoas, crianças, mulheres,velhos e jovens brutalmente mortos. Lembrei-me dos Tercios espanhóis na Itália espalhando o terror a Sicília, Holanda, a fúria de nossos soldados, a crueza de nossas conquistas personificadas em Pinzón, Cortés, Pizarro, Orellana; Ponce de León, onde a espada falou mais alto. Para a América exportamos nosso modus vivendis, Coroa, espada e a cruz, a santíssima trindade ibérica. Um misto de  igreja, autoritarismo, burocracia e domínio cruel. Ouço muito falar da Alemanha e de Hitler - as noticias chegam todo dia, pela rádio BBC. Os alemães esses prussianos, novos selvagens, bárbaros tecnologizados que se transmutaram do cavalo para o tanque e fazem uma guerra de agressão como nunca vista. Esse cabo austríaco neurótico e selvagem quer atear fogo na Europa. Ele parece encarnar o niilismo político de nossa era... A propósito um emissário me falou do episódio da Universidade de Salamanca, quando o filósofo conservador Miguel de Unamuno, que diverge do socialismo por princípios éticos e morais, foi enxotado por outro professor de orientação fascista que em sua fala afirmou que o nacionalismo basco era como um câncer a ser extirpado, quando o general franquista Millán Astray   disse "muerte a la inteligência e viva la muerte",  Unamuno pediu a palavra e desmoralisou o sanguinário Astray com um discurso humanista. O  general e seus asseclas apontaram fuzis e pistolas para o velho filósofo basco só não foi fuzilado porque foi salvo pela mulher de Franco que estava no evento e intercedeu por ele. Sim meu querido isso lembra a frase de Gobbles, "sempre que me lembro da palavra cultura, saco o meu revolver"

Meu querido esse pantâno de ossos, sangue e destruição em que estamos metidos é um 
ensaio para o grande espetáculo bárbaro que se abaterá a toda Europa. A autoafirmação do geist alemão, que hoje castiga a Espanha se extenderá ao velho continente. Os terríveis  Stukas  projetados para infernizar, causar terror, a blitzkrieg que agora nos aterrorizam,  a Wermacht com sua gerra relâmpago,  com suas tropas de vanguarda, testados nessa guerra intestina que mistura interesses pátrios com disputas ideológicas globais, é um prelúdio da Guerra Total, como preconizou Ernest Junger. O continente se rende as pretenções hitlerista. As potência lavam as mãos a intervenção militar alemã e russa em nossa pátria. Está a ser gestada uma nova Santa Aliança na Europa? Sim li sem dar muito crédito ao livro Minha Luta que o capo nazista publicou,  li-o em 1928 quando estive em Berlim e, aliás, senti um cheiro de ódeio e sangue das páginas do livro. Havia uma atmosfera fúnebre nos prédios e monumento e na expressão apreensiva das massas nas ruas tensas e frias da Berlim naquele Dezembro de 1928. De outro lado o camarada Stálin tem mostrado as suas garras por aqui, seus agentes andam provocando baixas entre líderes anarquista e anarcossindicalistas. Seus Tupolev e suas kalashinikov nos arma na retaguarda mas sorrateiramente provocam baixas em nossas vanguardas! Sim sou de origem aristocrata é certo que decadente.  Sou descendente da nobreza castelhana, meu pai  descendia do duque de Segóvia, e da duquesa de Jaén, minha mãe descendia da nobresa de Burgos... fui criado na França. Nasci em Madrid, conheci a arte moderna, travei contato estreito com os gênios da arte espanhola do século XX, exilados em Paris, sou de 1898; A despeito de tudo Dali nos salva, Picasso nos Salva, Goya nos tira de nosso sonho eterno de grandeza e de orgulho, sou um espanhol, forjado a ferro e fogo,um misto de cristão, marxista, libertário e anarquista. Conheci Lorca em Paris, Hemingway me disse certa vez que a "guerra nos pariu". Amante da cultura espanhola passou horas a me falar sobre a literatura hispano-americana, dos pintores espanhóis do "século de ouro" que a Espanha moldou seu  imaginário e que amava Velásquez e que Quixote povoou sua cabeça e seu mundo. Confesso que esses estrangeiros das Brigadas Internacionais tem um fascínio e admiração pela “lenda espanhola”;
Voltei de Paris impregnado das ideias de vanguarda, fui socialista por algum tempo, comunista e depois me convenci que a luta pela liberdade individual era mais importante. A minha visão de mundo é libertária e realista, mas também onírica como uma pintura de Dali, defendo o não poder, o fim da opressão, a liberdade da autogestão, liberdade de crença ou credo; divirjo profundamente dos socialistas e comunistas, sejam eles trotskistas ou leninistas/stalinistas. Foi por divergências que o camarada Andrés Nin foi morto.
Sim lembro-me bem no inicio da década de 20 quando estudante de filosofia em Santiago de Compostela ou em Salamanca, ou Porto e Lisboa, nos encontrávamos para falar sobre o mundo, política, economia, religião, e lógico em filosofia e ciência. Agora estou eu aqui no turbilhão dessa guerra intestina flertando com o perigo e a morte  e você em Lisboa. Ando cheio de lembranças, afinal ainda se recorda um brasileiro que dizia viver no interior daquele país? bons anos aquele em pensávamos nas tendências irreversíveis que se afiguravam na Europa, quando passeávamos pelas livrarias e tu  me falava da morte daquele poeta saudoso das glórias portuguesas que se valia de heterônomos. Bom chega de lembranças, elas preludiam uma certa decadência, fuga da realidade, mas a realidade às vezes é terrível. Estou meio cansado de ver nos luzeiros das catedrais os sinais do domínio milenar da igreja, chega de tentar compreender o mundo e a realidade dos homens. Tudo tem me cansado, é dificil conservar certa virgindade de espírito em meio a tanta destruição, mortes, a dormir sob o zunido metálico das balas de canhões. Onde só as vogais fazem sentido, só elas expressam o grito seminal da dor que se abate sobre os homens em tempos tão sombrios.  

 

 
Labareda
Enviado por Labareda em 22/04/2012
Reeditado em 12/12/2016
Código do texto: T3627812
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